Há trinta anos, a utopia atingiu um patamar raras vezes alcançado no mundo artístico. Testemunha-o o próprio título do livro da ativista Lucy Lippard: Six years: The dematerialization of the art object (1966-72). Ocorreu a sensação de que o estado poético é mais importante do que a poesia, que a arte é maior do que a obra. Quem se exprimiu através de uma tela ou de uma massa correu o risco de ser considerado um trapaceiro porque a arte não deveria se contentar com territórios predeterminados. Esse sentimento foi imediatamente envolto por opções ideológicas. O aspecto portátil das obras era interpretado como meio de abastecer a sociedade de consumo, de fazer girar a roda da mais-valia. Tela e pedestal significavam adesão ao mesmo dispositivo que alimentava a guerra do Vietnã, sustentava a ditadura brasileira e universalizava o padrão de vida burguês. Os artistas para denunciar o pacto usaram materiais descartáveis, no mínimo pouco nobres. Essa situação não foi privilégio de um ou dois centros artísticos, nem moda, mas produto de uma insatisfação que tomou conta da civilização. Nos anos subseqüentes, houve o desencanto. A revolução do modus vivendi não aconteceu no tempo desejado pelos campi universitários. Os museus seguidos pelas galerias se aparelharam para receber instalações, fotografias de eventos, obras efêmeras. Em suma, o establishment ganha a partida. A idéia da arte se rivalizar com o sublime sem obra gorou. O sonho da desmaterialização ficou adiado.
"Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena".
Mais do que um movimento na história cultural, a desmaterialização aponta para a própria essência da arte, permitindo acompanhar sua manifestação ao longo do tempo, tornando contemporâneas diferentes eras. A retomada da pintura depois das experiências dos anos sessenta assinala a vontade de prosseguir a expansão dos sentidos novamente em superfície plana. A obra de arte dá lugar ao nada, ao vazio, para que um evento novo ocorra. Os mestres, mais do que reduzir o supérfluo, mantêm o espaço em aberto, escancarado. A primeira idéia para o tema da bienal brasileira focalizava a noção do vazio. A dificuldade advinda do pensamento ocidental ter um padrão um tanto positivista afastou o achado, mas não perdeu de vista a questão de fundo. Como traduzir em arte o dito de Lao-tzu: "Do haver saem os Dez mil seres, mas o haver sai do nada. Com pouco, acha-se, com muito, perde-se?" É impossível lidar com a arte sem obra, sem matéria, mas a cifra do imaterial está presente de maneira única e diversa em cada obra-prima. A desmaterialização em arte se declina então em vários modos: a precedência do fantástico sobre o prosaico em Goya, Munch, Louise Bourgeois, Wiig Hansen; a conversão da arte em seus elementos constitutivos — à tela plana do cubismo em Picasso ou à linha, à tonalidade e às cores no artista-pedagogo Paul Klee, ou em Cy Twombly; a transformação do volume em linhas em Gego ou o quase contrário, a respiração da caligrafia no tridimensional em Tomie Ohtake; o diálogo com o divino em Wifredo Lam, Mestre Didi, Rubem Valentim, Arnulf Rainer; a resolução da sociedade contemporânea em marcas por Andy Warhol ou Jean-Michel Basquiat; os índices do nada em Anish Kapoor; a visitação originária ao solo natal em Pedro Figari e Qui Shi-Hua. A desmaterialização se quer polifônica, não se submete a nenhuma ortodoxia, a nenhuma linha mestra de manuais ou compêndios de história da arte. Visa ter a fluência do gerúndio para explodir no aspecto incisivo do presente: XXIII Bienal Internacional de São Paulo. | | |