O final do milênio impõe sobretudo às instituições consagradas às artes contemporâneas um balanço de seus procedimentos e atividades. A Fundação Bienal de São Paulo não se furtou ao livre exame e propõe pela primeira vez em sua história uma expo-sição que reflete e inova a própria maneira de mostrar arte.

A Universalis repartiu o mundo artístico em sete regiões e confiou a tarefa de selecionar aproximadamente seis representantes de cada uma a curadores experimentados.

Acreditamos que essa decisão confere uma autonomia que antes existia apenas virtualmente em exibições anteriores.

A própria multiplicação de bienais que ocorre em outras paragens - somente nos dois últimos anos surgem as de Johannesburgo (África do Sul) e Kwangju (Coréia do Sul) - exige da veterana Bienal de São Paulo uma atitude ativa, à altura de seu papel his-tórico. Conscientes do fato de que o etnocentrismo euro-americano hoje está inteiramente questionado, oferecemos o mesmo espaço dos centros artísticos ditos hegemônicos a continentes antes ignorados pela crítica de arte.

Os próprios artistas se encarregam de abolir nacionalidades ou de interpretá-las a partir de suas experiências. O japonês Yukinori Yanagi, atualmente residindo em Nova York, pesquisa o germe da universalidade. O franco-sérvio Braco Dimitrijevic detém-se na expansão da arte em detrimento de conflitos étnicos. O português Arthur Barrio capta à perfeição a situação da marginalidade cultural brasileira. Os próprios encontros ou des-encontros contam uma nova história da arte dificilmente encenada na Europa, a não ser como exceção (pensamos em Jean-Hubert Martin, que realizou a mostra exemplar Magiciens de la Terre no Centro Georges Pompidou, em 1989).

Todos os responsáveis pelas regiões são personalidades que já deram provas de abertura de espírito no circuito artístico internacional, seja através de grandes manifesta-ções artísticas, além do já citado J.-H.Martin (África e Oceânia), Achille Bonito Oliva (Europa ocidental), autor do tema do nomadismo cultural na 45ª Bienal de Veneza, seja através de funções relevantes em seus respectivos países, sem no entanto esquecer a pre-sença do Outro. Nessa categoria encontram-se Katalin Néray, diretora do Museu Ludwig de Budapeste e sismógrafa dos movimentos artísticos da Europa central e oriental; Mari Carmen Ramírez, curadora de arte latino-americana da Galeria Archer M. Huntington da Universidade do Texas em Austin, possuidora de um olhar ao mesmo tempo crítico e apaixonado sobre a arte vigente ao sul dos Estados Unidos; Nelson Aguilar e Agnaldo Farias, respectivamente curador-geral e curador-adjunto da 23ª Bienal Internacional de São Paulo, coordenadores de artistas de todo o Brasil aptos a relatarem a situação pro-posta; Paul Schimmel (Estados Unidos e Canadá), curador-geral do Museu de Arte Con-temporânea de Los Angeles e estudioso atento do cadinho de etnias na costa oeste norte-americana; Tadayasu Sakai, diretor do Museu de Arte Moderna de Kamakura e promotor da queda das fronteiras artísticas na Ásia oriental.

O projeto dessa exposição, a partir do tema global da mostra proposto pela Cu-radoria acerca da desmaterialização da arte no final do milênio, evidencia a abolição da inércia de tentativas anteriores, nas quais a instituição era mera hospedeira de representa-ções nacionais. Aponta, antes de mais nada, para a maturidade de instituições brasileiras, que, desde o Ministério da Cultura, passando pela Municipalidade de São Paulo, até a iniciativa privada, tornaram possível e inteiramente autônoma a exposição desenhada pela Fundação Bienal de São Paulo.








A desmaterialização da arte no final do milênio não é somente o tema de uma exposição, mas uma das próprias condições da obra de arte. Se a arte exibe de maneira perseverante sua desencarnação, é porque, nos melhores casos, opta por se desembaraçar de invólucros. Henri Maldiney compara a Montanha Santa Vitória de Cézanne ao mesmo tema desenvolvido por predecessores dos séculos XIII e XIX, concluindo que o artista trabalhou por supressão, eliminando todos os detalhes do motivo, tornando-os desnecessários. Se a bienal ocorresse em 1510, sob a mesma proposta, o curador poderia apor a uma obra tão alegórica como a Tempestade de Giorgione, uma tela etérea como a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Marcel Duchamp permanece a referência incontornável da contemporaneidade por sua crítica ao primado retiniano da arte. Essa exigência não parte de uma ascendência intelectual, desimplicada, sobre os sentidos, mas participa do mesmo desejo de supressão que animou as tentativas de Matisse ou Mondrian. No caso de Duchamp, essa vontade se processa multimediaticamente, por diversas formas de expressão. Um ready-made assinala antes de mais nada o abandono, a ausência. A Gaiola de pássaro, além de frisar o desligamento da pintura, transubstancia pedras de açúcar em cubos de mármore no interior do compartimento. Glorifica a ausência por interposição do sucedâneo.

Na década de 60, essa situação configura-se com ênfase, conforme testemunha o próprio título da obra da crítica de arte norte-americana Lucy R. Lippard, Six Years: The Dematerialization of Art Object (1966-1972). O livro apresenta um repertório de exposições que questionam a materialidade da obra de arte. Propostas radicais como as da minimal art, conceptual art, land art, arte povera, fluxus, performances (multiplicam-se os casos esquadrinhando outras latitudes) vêm à luz nesta época, antevendo ou acompanhando as grandes mobilizações sociais.

De que maneira este relâmpago cultural onipresente nos idos da década de 60 mantém seu poder ofuscante trinta anos depois? Convocamos curadores experimentados dos diferentes quadrantes para responder à questão. Temos o orgulho de informar que nenhum dos solicitados declinou o convite, que não foi necessário cogitar outro nome, o que prova de maneira cabal a pertinência da indagação.

Tadayasu Sakai, diretor do Museu de Arte Moderna de Kamakura, selecionou os artistas asiáticos. Essa instituição orgulha-se legitimamente de ser a primeira a divulgar a arte moderna no Japão. Em meu contato com o professor Sakai, perguntei-lhe sobre o grupo Gutai. Forneceu-me informações preciosas e me chamou a atenção para o grupo Monoha e a arte do artista sul-coreano Lee Ufan, além de se manifestar sobre a exposição Joseph Beuys que acontecia no Centre Georges Pompidou. Li seu ensaio sobre as afinidades entre o fauvismo e a arte japonesa. Almocei com o professor e seus assistentes, sendo aconselhado a ingerir o soba ruidosamente. Um ano mais tarde, ao lidar com a idéia da Universalis esses dados refluíram e constituíram a base do convite ao grande dignitário das artes no Japão.

A visão desassombrada da obra de arte própria ao professor Sakai advém da confluência de quem olha de perto sua concretude seguindo as nervuras e os caminhos necessários à sua formação e daquele que se interroga sobre a existência do universo. Tentando uma tradução certamente traidora, de aluno que só conhece a outra língua por algumas páginas de um dicionário que tem mais de mil, diria que o professor é um mestre estóico, que sua serenidade provém da constante provação de todas as experiências no campo da análise artística.

A Universalis está contida na obra de Yukinori Yanagi cristalinamente. O artista japonês se notabilizou no Aperto da 45ª Biennale di Venezia pela obra The World Flag Ant Farm. Tratava-se de 182 bandeiras confeccionadas com areia colorida e interligadas por canais onde formigas deambulam. Os himenópteros executam drippings, perfazendo uma insuspeitada action painting. No final do percurso, os símbolos se transformam em forma. Em São Paulo, Yanagi se utilizará da mesma estrutura com novos executantes: as formigas brasileiras. Homenageia a fauna e a poética de nosso país. O escritor Mário de Andrade na rapsódia Macunaíma prognosticou: "muita saúva, pouca saúde, os males do Brasil são". Segundo Cavalcanti Proença, a tirada tem origem nos alarmes dos sanitaristas e nas crônicas de viajantes alarmados com o apetite dos insetos. A paranóia atinge o surto com A voragem do colombiano José Eustácio Rivera, promotor da natureza como força desvastadora diante da qual qualquer veleidade civilizacional desaparece. Yanagi, por sua vez, conta com as formigas para operar a destruição das nacionalidades e o despontar da universalidade.

O professor Sakai fornece um conselho a todo o artista que vive ao largo dos centros metropolitanos: "somente por algo que ultrapasse a consciência humana que o público pode agarrar o sentimento vivo do que está entre a arte contemporânea e o ser humano". O alistamento de formigas desempenha o papel de iluminador do visitante. Com essa direção não apenas a arte da Ásia se torna visível, mas toda arte que vive aquém do 'universal' enquanto possibilidade condicionada pelo saber ocidental. Assim também o chinês Cai Guo Qiang, o indonésio Heri Dono, o filipino Charlie Co e o sul-coreano Soocheon Jheon são resgastados.

A questão de Jean-Hubert Martin, que selecionou os artistas africanos e oceânicos, não é alheia à de Tadayasu Sakai. O curador francês organizou no Centre Georges Pompidou, no momento em que desempenhava a função de diretor do Museu Nacional de Arte Moderna, em 1989, a memorável exposição Les Magiciens de la Terre. Foi a primeira ação antietnocentrista desta magnitude a ocorrer num dos centros da arte contemporânea ocidental. Cem artistas de todo o planeta compareceram ao evento. Não se tratou de condescendência pós-colonial, mas da dedução radical da crítica de arte hodierna. Walter Benjamin percebeu a ligação profunda entre criação e crítica ao enunciar a propósito do surrealismo: "o crítico pode instalar nas correntes espirituais uma espécie de usina geradora quando elas atingem um declive suficientemente íngreme". Em seu caso, Jean-Hubert se valeu da arte conceitual que eleva o poder desmaterializador da arte a um grau inimaginável, derrubando todos os tabus do suporte artístico. Um artista como Lawrence Weiner, convocado para aquela mostra, trabalha com sentenças que despertam o espaço, quebra os hábitos de trânsito entre a palavra e a imagem. Diante desse exorcismo agudamente eficaz, as cartas talismânicas do etíope Gedeon, a enciclopédia paralela de Frédéric Bruly Boaubré, da Costa do Marfim, a veia ornamental desenvolvida pela princesa Francina Ndimande (África do Sul), a iconografia inspirada no panteão vodu do artista Cyprien Tokoudagba, de Benin, os desenhos incisivos em cascas de árvore do pintor aborígene John Mawandjul e a paródia da pós-colonização do neozelandês Peter Robinson conquistam cidadania no circuito expositivo.

Depois de Magiciens de la Terre, o curador que permanece adstrito a seu quintal supostamente hegemônico recebe medalha de honra ao mérito outorgada pela Ku Klux Klan. Na 23ª Bienal Internacional de São Paulo, estamos próximos e distantes da mostra do Centre Pompidou. Próximos porque a bienal brasileira sempre se soube os Mágicos da Terra de ultramar, distantes por não conseguirmos ver a África do ponto de vista da antropologia visual, demasiado implicados que estamos. Do Brasil é mais fácil praticar antropologia da Escola de Paris ou estudar a atração de Matisse e Picasso pela arte negra ou a receptividade do jazz no universo cultural francês.

Como exímio africanista, Jean-Hubert foi convidado pela Fundação Bienal de São Paulo a assumir a curadoria da mostra Picasso, integrante das salas especiais. Quando consultado sobre escultura africana, o mestre espanhol respondeu: "Não sei de onde isso vem, nem para que serve, mas compreendo muito bem o que o artista quis fazer".

Mari Carmen Ramírez, curadora de arte latino-americana na Galeria Archer M. Huntington, ligada à Universidade do Texas, em Austin, cuida desta região na Universalis. Compreende o tema da desmaterialização a partir da inscrição sincrônica, relacionado à visão utópica dos anos 60 de uma arte que busca se liberar do asfixiante circuito dos museus e galerias, do capitalismo artístico, assim como do "síndrome da moldura e pedestal". Lucy R. Lippard, que formulou a idéia, foi a primeira a denunciá-la assim que tomou corpo o processo de cooptação dos radicais pelo establishment, na década subseqüente.

A fim de se distanciar das seqüelas daquela interpretação, Mari Carmen sustenta a tese de uma re-materialização nas artes hispano-americanas. Porém o próprio prefixo 're', a exemplo do 'pós', remete ao estado prévio, aquele em que o lugar da arte na sociedade afluente era questionado. As constantes referências a Marcel Duchamp em seu ensaio deixam entrever a América Latina como um vasto campo de ready-made. O próprio deste dispositivo provém do arrancamento de um contexto e do transplante para outro. Todavia ao sul dos Estados Unidos ocorre o casamento do ready-made com o barroco. Nenhum outro estilo artístico encontrou tanta receptividade no continente latino quanto esse, a ponto de alguns monumentos religiosos serem apreciados na atualidade como ápices criativos. A própria percepção do barroco espanhol enquanto forma artística essencial para a modernidade passa pela produção do poeta nicaraguense Rubén Dario. O artista cubano Ricardo Brey usa uma linguagem profundamente exercida em seu país: a reciclagem dos objetos advinda da penúria na ilha. Embora residindo em Gent, na Bélgica, não abandona os choques culturais produzidos pela coexistência surpreendente de refugos que atingem a explosão sucessiva de estados poéticos.

O uruguaio Luis Camnitzer, criador plástico e ensaísta reconheceu a ilha como o paradigma da existência visual latino-americana, dedicando-lhe a melhor súmula sobre sua arte contemporânea, New Art of Cuba. Suas instalações mantêm a tensão constante entre ética e estética que caracteriza os outros participantes de seu grupo. A própria questão da visibilidade, também captada mas em outro sentido em Étant donné de Duchamp, ecoa em sua obra, exigindo um esforço do visitante para encontrar o ângulo conveniente para abordá-la.

O chileno Gonzalo Díaz trabalha como um poeta barroco que operasse com imagens, empregando hipérbatos, hipérboles, aliterações, epigramas, metáforas dentro do espaço de sua obra, estabelecendo um duelo entre os textos e a visualidade. Na 5ª Bienal de la Habana, implantou no Castelo do Morro um soneto de Garcilaso de la Vega e uma série de fotos de aves aquáticas, obtendo leveza cuja procedência nascia da estranha pertinência entre o ícone e a linguagem.

A obra da artista colombiana María Teresa Hincapié envolve peregrinação e apropriação de espaço. Os gestos de quem constrói e desconstrói um ambiente evocam tanto os de Jackson Pollock quanto os do guardião de um templo. O labirinto de trapos e artefatos tem a precisão de uma mandala. María Teresa nega a divisão do trabalho artístico em pintura, escultura ou desenho, privilegia a atitude, traz à sua ação a força da terra. Sai do mesmo ponto de onde partiram andarilhos como Richard Long, Marina Abramovicz e Ulay e traz intramuros a dimensão do espaço da paisagem, que só pode ser sentida pelo fôlego e travessia.

O artista venezuelano José Antonio Hernández-Diez põe em cena o olho como protagonista central de suas propostas, seja o da janela de uma lavadora automática, seja o de um monitor de vídeo, do órgão cardíaco no eixo da cruz. O olho enquanto processo, pulsátil, nervoso aparece em espelho, como um duplo que inquire o espectador. Nessa obra extremamente asséptica, o globo ocular aparece como parte de um sistema que reflete os mecanismos da consciência culpada a ser tratada pela religião oficial.

Paul Schimmel, curador-geral do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles incumbiu-se de escolher artistas dos Estados Unidos e do Canadá. Ao contrário dos colegas, Paul optou por mostrar a jovem geração e, mais ainda, os que não participaram de nenhuma exposição no circuito internacional, chegando ao requinte de convidar uma artista que ainda não fez mostra individual, Julie Becker. O principal mérito de uma exibição de arte contemporânea reside na manifestação de força desconhecida, na reunião de artistas singulares em uma coesão indissolúvel. Foi o que aconteceu com Helter Skelter L.A. Art in the 1990s. O evento provocou no mundo artístico a mesma sensação da queda do muro de Berlim. Significou no plano da sensibilidade a derrocada dos centros exclusivos irradiadores da arte, como Nova York e Colônia. Praticado esse feito, Paul voltou-se à história da arte e apresentou em Handmade Pop-American Art in Transition 1955-62, mostra organizada conjuntamente com Donna De Salvo, a prova da ligação insuspeitada entre o expressionismo abstrato e a pop, anteriormente embalsamados nas respectivas polaridades.

Paul captou uma mutação capaz de prefigurar o comportamento real da arte contemporânea. Muitos artistas detiveram-se diante do portal inviolável da decoração, da beleza e da habilidade, negando-se a ingressar. Uma noção pré-concebida de austeridade na arte impedia. Alguns recém-chegados desafiaram o tabu. O curador lançou a sonda neste sentido, deixando de lado voluntariamente a contribuição canadense, centrada no reconhecimento da produção de Jeff Wall e Stan Douglas.

Ao contrário dos artistas escolhidos por Mari Carmen, já nossos conhecidos de outras bienais ou exposições em galerias brasileiras, à exceção de María Teresa Hincapié, os apontados por Paul assemelham-se às cidades imaginárias de Italo Calvino. Tom Friedman salva os objetos mais próximos, descartáveis, da destinação anônima e inexorável. Sua atividade visionária converte a goma de mascar em contra-relevo, esculpe o comprimido de aspirina, orquestra as ondas rigorosamente concêntricas de cabelos no sabonete e faz um quadrado a partir de papéis rasgados.

Os retratos de Elizabeth Peyton são de segunda mão, oriundos de fotografias de revistas, interfaces entre o público e o privado. O suporte de madeira serve de refletor ao óleo aplicado, tornando inequívocas todas as intervenções, criando um filtro entre representação e artista. Elizabeth propõe a exposição do day after, quando emissor e receptor estiverem eliminados, daí a extraordinária solidão das personagens.

O uso do kitsch em Jennifer Pastor, da cenografia em Julie Becker, das "artes aplicadas" em Jim Hodges, das atualidades em Kathleen Schimert cria novas figuras de ready-made, conduzindo o esquecimento de si à anamnese.

Katalin Néray, diretora do Museu Ludwig, em Budapeste, seleciona os artistas do antigo bloco socialista. A tarefa é árdua, pois na última Bienal Internacional de São Paulo a Fundação Soros viabilizou o panorama abrangente da produção visual da região. Katalin supera a dificuldade convocando o russo Ilya Kabakov, autor de meta-linguagem que oferece novas possibilidades de mostrar obras de arte. A instalação, segundo o artista, sucede o ícone, o afresco e a tela, inaugurando nova era.

As notícias provenientes da Rússia espantam pela tamanha denegação de experiências passadas. A própria irrealidade do sistema soviético e de sua irradiação nos países vizinhos apaga os vestígios da antiga etiqueta. Já pertence à história dessa nação o esquecimento das tradições em prol da absorção de padrões 'ocidentais'. Partificiparam da ciranda da modernização Pedro, o Grande, Lênin e outros heróis civilizadores. Mesmo a contrapartida desse estado de coisas, alimentada pelos fãs dos mistérios da alma eslava, não passa de atitude reativa. Em Berlim, existe um mercado de lembranças descartáveis praticado por centenas de refugiados que se desfazem, entre outras reminiscências, de medalhas que premiavam aumento de produtividade, fidelidade ao partido, amor à causa revolucionária.

Kabakov rejeita tanto a tentativa de fazer tábula rasa quanto de cultivar o passado. Reedifica nos múltiplos megaeventos em que participa o passado como futuro. Suas instalações fazem a arqueologia do ontem sem deixar de mudar completamente a sintaxe do contemporâneo. A toalete, construída na Documenta 9, em Kassel, cria um contraponto irônico à edificação neoclássica do Fredericianum. "Instalação para mim só sanitária ou elétrica", fulminava o saudoso pintor Iberê Camargo. O russo poderia ter se apropriado do sarcasmo do último de nossos moicanos expressionistas, desenvolvendo a moradia exemplar do intelectual soviético vítima do "exílio interior". Lá estão as latrinas recicladas em extensão de gabinete de estudos e dormitório de algum egresso do Gulag. O enxoval, a parafernália necessários para o decurso da existência padecem na poeira do desamparo. Essa poética se prolonga na instalação C'est Ici Que Nous Vivons realizada no Centre Georges Pompidou, no ano passado. Quatro grandes colunas são envoltas por um canteiro de obras, com dormitórios, salas de reunião, escritório, vestiário, que se interligam. Os visitantes não são nunca voyeurs nestes ambientes, mas possíveis habitantes em algum dia de derrelição irremediável. Alguns transeuntes franceses idosos judeus recordavam-se espontaneamente da república de Vichy durante o passeio povoado por colchões, poltronas estropiadas, fios de aço, madeiras, roupas usadas, folhinhas, penicos, panelas. A concepção de implantar objetos artísticos ou de uso cotidiano nunca mais será a mesma depois de Kabakov. Qualquer curadoria que não levar em conta a potencialidade do tempo vivido demonstrada nesses ambientes, corre o risco de adotar o partido kitsch dos epígonos da 'arte', implacavelmente datados diante do apocalipse pós-moderno.

O dispositivo inventado pelo instalador respeita e coloca em seu mais adequado patamar as produções dos companheiros, também agudos críticos da máquina estatal totalitária: o checo Milan Knízák, a eslovena Marjetica Potrc, o húngaro Péter Forgács, o letão Ojars Petersons e o polonês Zbigniew Libera.

Achille Bonito Oliva elege os artistas da Europa ocidental que trabalham como críticos de um mundo cindido em tendências conflitantes de globalização e tribalização. Retomando uma noção cara a seu ideário, o codificador da transvanguardia nota a afinidade entre o maneirismo e a época presente. O homem maneirista viu a crise política, científica e religiosa fazer ruir as certezas conquistadas pelo Renascimento. A bancarrota das doutrinas marca o final do século XX, criando situação homóloga à dos meados do século XVI. O artista de hoje, um pouco como os precursores, glosa o sistema a fim de miná-lo por dentro. Eis a origem da ideologia do traidor.

Oliva alicia sabotadores capazes de prejudicar o avanço do consenso mediático promovido por redes televisivas mundiais e do sectarismo comandado por palavras de ordem do clã. Braco Dimitrijevic, francês de origem bósnia, aglutina a obra de arte congelada em manuais a produtos naturais ou artefatos para causar um relâmpago pela liberação da energia aprisionada. A estratégia não difere da que os membros da Internacional Situacionista chamavam desvio de elementos estéticos pré-fabricados visando à construção de uma situação repleta de condições insurrecionais. Neste sentido, desmaterialização significa decomposição das formas tradicionais de cultura possibilitando novas intervenções.

O belga Panamarenko sobrevoa os territórios do saber com seus projetos de dirigíveis, aeroplanos, automóveis, mochilas voadoras, escafandros. Um balão estacionado na sala de exposições consegue despertar os íris da natureza morta de Van Gogh ou re-mobilizar os Burgueses de Calais, de Rodin, pois devolve às obras o resíduo de insubmissão.

Ben Jakober e Yannick Vu transpuseram do estado de desenho à estereometria o cavalo esboçado por Leonardo da Vinci no código da Academia Real de Madri, com a ajuda de softwares que calcularam o valor dos intervalos, a resistência da peça, os pontos de solda da ossatura. Na 45ª Biennale di Venezia, o animal emergia das águas da Laguna encarando os Giardini. Na Universalis, o casal cultiva com agudez o ímpeto do anarquismo lírico. Wim Wenders pretende captar em suas pinturas eletrônicas a carga emotiva do exílio, do transcurso das pessoas que carregam um sentido em suas deslocações para plantá-lo em solo enigmático. Sua filmografia consagra a apologia do ver que se transforma em tato, trama de tela no Amigo Americano, o recobramento da visão em Nick's Movie.

Enzo Cucchi e Luciano Fabro poderiam ser a final de um campeonato artístico italiano, em que a arte povera mede forças com a transvanguardia, a sedimentação do saber erudito do milanês com a intuição transgressora do romano.

As peças de Shirazeh Houshiary, inglesa de origem iraniana, aludem à concepção planiforme da árvore da vida, como o desenho de tapetes muçulmanos que traçam o projeto dos jardins do paraíso. Constituem na exposição bússolas do sentir.

A Universalis opõe concepções estilísticas de arte diametralmente opostas entre regiões: o neobarroco latino-americano ao neomaneirismo europeu, por exemplo. Luciano Fabro vê o barroco como o disfarce de uma estrutura arquitetônica, uma forma de hipocrisia. Já o romancista e ensaísta cubano Severo Sarduy interpreta essa duplicidade como intertextualidade entre a metrópole e a colônia, a idéia e a matéria. A falta de funcionalidade barroca censurada por inúmeros comentadores advém do "superego do Homo faber que impugna o deleite, desperdício e prazer, isto é, erotismo como atividade que é sempre puramente lúdica".

Em torno desses parâmetros, gravita o melhor da arte brasileira, não sendo supérflua a menção do curador Agnaldo Farias ao conto "A terceira margem do rio", de João Guimarães Rosa, para discorrer a respeito. O eixo Rio de Janeiro-São Paulo que regia o ambiente cultural do país volatiza-se. Mesmo os artistas cariocas ou paulistas escolhidos estão distantes do padrão médio das produções das respectivas cidades por uma espécie de auto-estranhamento.

A maneira como o amazonense Roberto Evangelista construiu a canoa para abandonar as margens codificadas instrui. A instalação Nika Uiícana, realizada com Regina Vater e apresentada em 1989 na Galeria Clocktower em Nova York, endereça homenagem a Chico Mendes, líder rural assassinado por latifundiário. Roberto trabalhou com as formas que instauraram a civilização na Terra: o círculo, o quadrado e o triângulo. Circulares as trezentas cabaças e o centro da instalação, quadrado o perímetro que ocupam e triangular a ascensão das penas em direção à luz. O todo presta contas ao título da obra, que provém da língua tucano e significa "união dos povos". Os velhos diplomatas diziam que um dos maiores prodígios brasileiros está em que uma mesma língua é falada em todo o território nacional. A obra de Roberto revela os limites da pretensão niveladora.

O mineiro Eder Santos edifica sua canoa no rio catódico, convertendo a eletrônica num instrumento que capta memórias perdidas. As personagens de seus vídeos feito cometas deixam rastros de luz. Em interiores, os objetos têm angústia e quase rompem sua condição de inércia. Ao ar livre Eder mostra uma paisagem, austera, montanhosa, iluminada por transeuntes messiânicos.

O português residente no Brasil Arthur Barrio, desde a década de 60, início de sua carreira, escolheu o lixo como força motriz de seus trabalhos. Nada que tivesse o refinamento dos Merz Bau de Schwitters ou das combine paintings de Rauschenberg, mas a carne crua, o sangue, a urina, veículos das obras realizadas durante a vigência do regime militar, agrediam mais que toda a arte panfletária da época. Em instalação mais recente, Barrio produziu uma salina pontuada em salas escuras por lâmpadas, expondo a poética do intervalo descontínuo preenchido pela pobreza do material elétrico.

O carioca Nelson Felix dedica-se ao contraste de materiais operando com grafite, mármore, mercúrio ou vegetais. O essencial em suas peças acontece na relação explosiva entre a cor de uma substância, sua extensão, o vazio entorno. A partir desse conhecimento alquímico dos elementos, Nelson passou a investigar o corpo vivido como módulo para sua escultura. Resulta algo como a introdução do sujeito em eras nas quais o planeta não estava habitado.

As paulistas Geórgia Kyriakakis e Flávia Ribeiro lidam com o desenho chegando a resultados muito diversos. Geórgia considera o papel como película e por meio de uma série de práticas que incluem o banho de resina ou o fogo e sua marca alcança uma vida tridimensional. Talvez por isso a passagem do papel à cerâmica tenha sido espontânea. Formas retorcidas de barro envoltas por fios azuis possuem a dramaticidade do gesto e o desapego do molde. Flávia estudou os incunábulos medievais da Biblioteca Britânica por amor à superfície plana. Seus suportes admitiam o bordado, a costura como meios de prolongamento ou de intervenção ativa. Para criar uma relação mais íntima entre seu foco de interesse e o suporte, descobre o látex que se transforma no receptáculo ideal para receber a impressão de flores.

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