| Por Roberto Guevara
Contraponto do vazio no qual eu creio René Char
Gertrudis Goldschmidt é para nós, na arte, e entre todos aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-la, simplesmente Gego, um nome carregado de espaços e linhas. Venezuelana, nascida em 1912 em Hamburgo, chega a Caracas em 1939, fugindo da asfixia e da sombra aterrorizante do nazismo, um ano apenas após se graduar arquiteta na Universidade de Stuttgart. É de se presumir que, na sua formação, tenham ficado outras marcas daquelas décadas anteriores de tão excepcional impulso renovador. Já se tinham acumulado ações como as iniciativas depuradoras do Grupo de Stijl (1915), fundado por Mondrian e van Doesburg, no qual se estabelem as relações entre o neoplasticismo e a metafísica. A Bauhaus abre por duas décadas o maior laboratório criador do século, praticamente em todos os sentidos. Por faltar um apoio filosófico ou teórico suficientemente convincente e universal, o grupo Dadá abre as portas, mediante a ruptura com a sociedade e seus valores, e dá um passo no sentido do que hoje poderíamos chamar de novos meios, ou maneiras alternativas de criar na dissidência e à margem dos meios tradicionais. Mais além de qualquer postulado dogmático, Mondrian é a chave para se enxergar além da aparência natural; lembrando que quando começava a pintar uma flor, via só a sua estrutura. Busca "a realidade pura", "uma substância mais universal". E chega a concluir: "Se não podemos liberar a nós mesmos, podemos pelo menos liberar a nossa visão".
Todo o peso de um continente saturado, convulsionado, instado dramaticamente pela barbárie da guerra, parece deixar lugar para um sentimento que só a América poderia dar a Gego: o descobrimento de um outro espaço, fora do comum e livre, junto ao sentimento de não estar no fim de uma aventura, mas justamente no começo: nessas novas terras, tudo está por ser feito. Assim compreendemos como Gego se envolveu rapidamente numa atividade febril. Alterna profissões, tarefas, pequenas e grandes empreitadas criadoras. Era o início da década de 50, Gego inicia sua obra. Transcende a outros em seu afã de compartilhar os vastos horizontes. Exerce uma docência luminosa. Converte-se em Gego, uma tecedora de urdiduras, em que o homem, junto com um novo sentido de espaço, descobre que já não pode estar fora da obra.
Recordo uma obra inusitada, talvez única em toda a trajetória de Gego, mas muito oportuna para começar uma análise do seu trabalho. Trata-se de um livro, totalmente composto por folhas em branco e moldado no interior, de modo a fazer e desfazer conexões, volumes que aparecem e desaparecem entre as mãos do 'leitor' assombrado com aquele pequeno prodígio que podia 'materializar' e 'desmaterializar' uma visão cada vez diferente do real percebido. Numa versão radical, podemos nos lembrar do insólito Merzbau de Hannover (1923), de Kurt Schwitters, uma tentativa sem paralelo, destruída pelo horror bélico, que no entanto recuperamos, com recordações e fotografias, como um feito para pensar o século fora dos limites que cada geração, movimento ou momento podem provocar. Gego, com seu livro digno de um poeta em estado de graça depurador e extremo, estabelece as premissas para toda a busca da libertação, que resgata daquela experiência, só um elemento codificável: a linha, formada pela luz, nas margens dos volumes instáveis e furtivos.
Fazer Aparecer o Espaço
A linha é o elemento essencial na obra de Gego, tanto no desenho quanto na obra gráfica, como na escultura e sua expansão necessária, a ambientação e as grandes obras de escala cívica. Algumas simples linhas sobre o papel, ou sua impressão sem tinta nem cor, têm uma só função, como os outros meios: criar estruturas que tomam o espaço, modulam-no, organizam e lhe dão mobilidade, ritmo, tensão, ordem, ou ao contrário, ruptura e abertura para fora, vazio ou indeterminação. De tal modo que a obra parece modular essas estruturas que pretendem 'fazer aparecer' o espaço vazio, manejá-lo como condição imprescindível para modificar o plano, revertê-lo em elementos, formar uma nova capacidade dinâmica.
Se tomarmos, por exemplo, a primeira condição da escultura em Gego (1957-72), encontraremos os sistemas estruturais baseados na modulação de linhas paralelas situadas num plano, que evolueam no espaço, para permanecer no final como espaço percorrido, movimento, variação e energia que formam volumes virtuais, um acontecimento 'congelado' no ar. As soluções são extremamente variadas. Pode haver 'faixas' de linhas que se movem em espiral, ou podem-se armar desenvolvimentos de planos de linhas cortados em quadrados, articulados na vertical, cuja altura varia de alguns centímetros a alguns metros. Também podem ser faixas de linhas metálicas paralelas, cujo desenvolvimento no espaço tem forte ênfase direcional, anulando às vezes o sentido convencional de localização. Essa investigação constitui a base para o trabalho de grandes proporções, para obras tão especiais como a grande coluna de dez metros de altura, para um banco de Caracas, na qual as estruturas de planos quadrados se articulam com uma dinâmica própria, que inclui os efeitos visuais do movimento e a transmutação. O mesmo sucede com outra obra, Cinco Pantallas (1968-71), realizada para o Instituto de Investigaciones Científicas (IVIC) e colocada na intempérie: quando nos movemos ao redor dessa peça de quase quatro metros de comprimento, ficamos sujeitos a suas constantes mudanças e modificações, que alteram inclusive a realidade da estrutura física e a tornam ligeira, inefável, variável.
Aos sistemas de linhas paralelas seguem outros de linhas verticais de resolução mais livre. São principalmente os Chorros (a partir de 1970 e 1971), nas quais as estruturas são mais flexíveis, permitem evoluções e podem chegar a convidar a serem tocadas e relativamente manipuladas. Outros sistemas baseados na estrutura triangular são propícios para novas aproximações, as Flechas e Reticulareas, esta última uma proposição que também adota a alternativa de uma base em quadrados. Junto com o trabalho antes realizado de gravuras e desenhos, agora as obras prescindem do suporte e se convertem numa culminante versão das estruturas no ar, as Reticulareas e os Dibujos sin Papel.
O Homem e os Espaços dentro do Espaço
Quando os sistemas estruturais deixam as formas estáveis para forjar uma admirável seqüência de esculturas, em geral metálicas e escuras, que parecem se modificar sobre o suporte invisível do espaço; quando já o recurso do suporte fixo ficou para trás, surgem as estruturas liberadas, flexíveis, que crescem espontaneamente na indeterminação do exterior e que o visitante pode percorrer por dentro, em movimentos livres, tentando inventar ou descobrir relações, verificando por seus sentidos como as formas virtuais se enchem de outras e mais outras, num périplo ilimitado, em que o real e o possível estabelecem uma autêntica relação de prazer, jogo e invenção. São as reticuláreas, cuja versão historicamente mais importante foi a instalação que esteve no Museu de Bellas Artes de Caracas (1969) e em exposições como The Responsive Eye (MOMA, Nova York) e em Art in Latin America (Yale University). Mais tarde recebe o Prêmio Nacional de Artes Plásticas da Venezuela e à sua Reticularea é dado um espaço permanente na Galería de Arte Nacional, Caracas.
Gego é uma criadora objetiva, trabalha os materiais simples e pouco ostentosos, como o arame, o aço inoxidável, as cordas e outros igualmente modestos, como parte de um ofício cotidiano. Stanton Catlin, diretor do Center for International Relations, considera esse trabalho uma expressão sensível do 'construtivismo orgânico' e define a artista como incansável 'aranha tecedora' de redes que aprisionam a realidade e colocam o homem dentro delas, com novas perspectivas e objetivos. Gego se move durante toda a sua trajetória entre duas coordenadas, uma delas a inquestionável necessidade de ordem e sentido consciente da construção; a outra, a necessidade de anular com a obra a distância entre o autor e o espectador, de situar ambos na mesma condição participativa e oferecer a obra como um processo aberto. Obras como as Reticulareas e outras afins são constituídas por finas linhas articuladas de varinhas ou peças de arame e outros materiais, às vezes sobras ou outras peças industriais que materialmente 'flutuam no espaço' e se situam nele como um novo e definitivo suporte. É a grande diferença. Os volumes virtuais das Reticulareas e suas infinitas possibilidades de recomposição por parte do espectador; os Dibujos sin Papel, que se manifestam diante dos olhos como estruturas suspensas em um vazio indeterminado, são proposições que manejam a obra livremente, poder-se-ia dizer que não terminadas, se aceitamos que somos nós que devemos situar, relacionar, modificar, crescer...
Assim, podemos recordar as palavras do filósofo mais concludente do século, o homem que reduziu a história da filosofia a um 'campo de ruínas'. Para Heidegger, "a linguagem é a moradia do ser, e sob seu abrigo habita o homem". Nosso ser pode penetrar no vazio sustentador da mutação das obras de Gego, permanecer com elas em sua transição de matéria à desmaterialização, de uma opção a outra e conservar a unidade do seu processo. Ser com elas processo. A escritora e crítica de arte Hanni Ossot, em seu estudo sobre Gego (Museo de Arte Contemporáneo de Caracas, 1977), nos proporciona outra citação de Heidegger que pode esclarecer as nossas palavras: "O dizer projetante é aquele que, na preparação do dizível, traz ao mundo o indizível como tal ao mesmo tempo".
Recordo com emoção quando vi pela primeira vez essas obras mutantes e suspensas na percepção até que inventássemos um lugar para situá-las. Escrevi então: "O desenho de linhas saltou para o espaço real, para o ambiente, para rodear o espectador em uma nova experiência".
Como Calder, poeta do movimento abstrato, a obra de Gego lembra de outra maneira instintiva, a natureza. Ela batiza as suas obras de modo significativo, dando-lhes nomes como Chorros, Nubes, Troncos e outros semelhantes. Com sua habitual perspicácia, Marta Traba declarou a Maritza Jimérnez em Caracas (El Universal, 8 de agosto de 1980): Gego "não se relaciona com a imagem da natureza, e sim com sentidos e estruturas profundas..."
Entrar no espaço com Gego é outorgar uma corporeidade instável, uma colocação, um deslocamento e seguir a forte violência das mudanças que produz uma obra que se põe em execução e se modifica sucessivamente. Diríamos, como o poeta francês René Char que se trata de um "contraponto do vazio no qual eu creio".
Sobre Gego
"Os espaços de Gego, os arames de Gego são linhas que formam espaços. Com Reticulareas, Gego não constrói nenhuma arquitetura, não fecha espaços. Seus espaços são uma metáfora livre, aberta e móvel, para a ante-sala do sentir e pensar, para os elementos do espaço vital." Dietrich Mahlow, 1986
"Quando vi esses trabalhos pela primeira vez, senti interiormente uma necessidade de tempo: para ver o que via, queria apreciar lentamente todas as tensões e conflitos que engendravam os seus desenhos. Compreendi que eles eram parte de imensas estruturas que se agitam na necessidade de se dissolver a si mesmas, para reencontrar-se com uma relação de sensações visuais." Eugenio Espinoza, pesquisador de arte, Venezuela
"Em Gego o conceito de arte não pode se reduzir a esquemas precisos, porque vai além e inclusive os contradiz. Seu planejamento é o desafio estrutural que se manifesta em invenções sensíveis." Ruth Auerbach, curadora.
"Técnica e ciência são para ela bons servidores, leais veículos expressivos: trata-se de uma obra de arte com escala de valores, cuja prioridade é a de preservar e exaltar a especificidade da mensagem artística. Implantada em Caracas, a obra de Gego tem uma dimensão especial: converte-se em sinônimo de repouso e claridade, como os nenúfares tardios de Monet, como as últimas paisagens de Turner: a paisagem com lago, o lugar que fica fora da disputa." Marta Traba, 1977. |
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| Notas para uma Breve Biografia Por Roberto Guevara
É difícil negar que Gego nasceu na Venezuela, embora o registro diga que foi em Hamburgo (1912) e que se graduou em arquitetura na Universidade Técnica de Stuttgart (1938). Desde que chegou a Caracas em 1939 começou a vibrar numa determinada luz e na possibilidade de um espaço desmesurado e novo.
Gego progrediu com sua obra: inventando-a, deixando-a crescer e ajudando a outros, muitos outros, a crescer no desenfrear da imaginação que é toda obra de arte. Aqui amarrou sua vida, e aceitou a necessidade de descobrir todos os dias o sentido de viver. Como diz o provérbio chinês: "hoje é o futuro em que ontem pensávamos". Começou de diversas formas: fundou uma fábrica de luminárias e móveis, trabalhou como desenhista para arquitetos. Finalmente liberou uma obra baseada na aventura da linha no espaço. Em 1955 fez sua primeira individual na Galeria Gurlitt, em Munique. No ano seguinte, converte o papel dos planos em volumes, a partir da linha. Chegam logo as formas tridimensionais paralelas e curvadas, suas primeiras esculturas em aço inoxidável, ferro e alumínio. Expõe na galeria do grupo Sardio em Caracas e outras da capital. Ao mesmo tempo, começa a dar aulas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidad Central de Venezuela e na Escuela de Artes Plásticas Cristóbal Rojas de Caracas.
Uma viagem aos Estados Unidos, em 1959, país onde residiu por um ano, está carregada de grandes realizações. Faz sua escultura mais importante dessa época, Sphere, atualmente na coleção do Museu de Arte Moderna de Nova York. Participa de The Responsive Eye, uma coletiva de transcendência histórica, e dois filmes são realizados sobre a sua obra: Hierro Vivo, de Carlos Cruz Diez, e Metal Alive Sphere, do cineasta Richard Rayner.
Quando do seu regresso à Venezuela, dedica-se ao trabalho docente (1960-67). Expõe no Museo de Bellas Artes de Caracas (1961) e realiza estruturas aéreas dentro de espaços interiores do Banco Industrial de Venezuela. Primeira de uma série de importantes obras realizadas em colaboração com a arquitetura, tais como a fachada do edifício de oito andares para o Instituto Nacional de Cooperación Educativa (INCE) e mais tarde no edifício Cediaz, ambas em conjunto com Gerd Leufert, no Instituto Venezuelano de Investigaciones Científicas (IVIC) e na área exterior do Museo de Arte Contemporáneo de Caracas Sofia Imber, no Parque Central, entre outras.
Novas viagens à Europa e aos Estados Unidos ampliam os seus conhecimentos e experiência. Durante um ano trabalha em The Tamarind Lithography Workshop (1966) de Los Angeles, Califórnia, onde mais uma vez mostra em litografias e gravuras a aventura da linha no espaço.
Em 1968 começa a trabalhar sua grande proposta de um sistema estrutural, baseado em organizações de linhas em triângulos e quadrados que abordam o espaço com grande liberdade de organização. Aqui surgem posteriormente as Reticulareas, um esquema para apresentar no espaço uma série de volumes virtuais, transparentes, que se abrem com liberdade no espaço e terminam por ser, finalmente, a substância do mesmo.
Essas Reticulareas, originalmente denominadas assim pelo crítico de arte Roberto Guevara, foram apresentadas no Museo de Bellas Artes de Caracas e no Center for International Relations de Nova York (1969).
Stanton Catlin, diretor dessa última instituição, destaca o trabalho de Gego, que coloca dentro da tradição denominada de 'construtivismo orgânico'. Além disso, expõe em Art of Latin America, na Universidade de Yale.
A partir de 1970, as articulações dos arames em forma de redes ou de organizações verticais, conduzem a novas explorações. Mesmo quando a linguagem é definitivamente abstrata, como no caso de Alexander Calder, as estruturas de Gego sugerem sentidos da natureza em suas estruturas dinâmicas, tais como Nubes, Chorros e Troncos. Seu elemento essencial, a linha, combina-se perfeitamente com os materiais modestos como o arame e o aço inoxidável.
Precisamente a Reticulárea exposta no Salão de Artes de Venezuela (1976) foi premiada e passou a fazer parte da coleção da Galería de Arte Nacional. É um ambiente inteiramente desenhado por Gego, no qual as redes de arame entrelaçado preenchem praticamente todo o espaço de uma sala, na qual os espectadores podem transitar e forjar todas as visões que a obra permite de forma ilimitada.
Um pouco mais tarde recebe o Prêmio Nacional de Artes Plásticas (1979) pelo conjunto de seu trabalho. Desde 1981, La Reticularea está exposta para o público numa sala permanente da Galería de Arte Nacional de Caracas.
A partir de então sua obra, sempre baseada na linha, feita com sutileza em meios tão diferentes como o gráfico, o desenho e a escultura, se expande-se por diversas proposições que têm em comum a capacidade de dinamizar as estruturas em volumes virtuais, em tramas, ambientações e instalações diversas.
Os Dibujos sin Papel expostos em 1984 no Museo de Bellas Artes de Caracas são um exemplo da sua capacidade para desenhar no ar e criar por assim dizer espaços no espaço.
A partir da década de 70, Gego planeja obras que são maneiras de se entrar no espaço. Lembra um livro de folhas todas em branco, moldado internamente, de onde os espaços vazios feitos no papel e em material liso, nítido, estabelecem uma relação espacial de materialização e desmaterialização que surge à medida que o espectador passa as folhas e abre o jogo do contraponto de espaços/formas, que aparecem e desaparecem.
É surpreendente como se pode dizer que toda a sua obra é um desenvolvimento ou se desprende daquele livro de um poeta construtivo. Incansável, Gego trabalha em diferentes proposições, inclusive em suas teceduras, tramas que gera com tiras de papel sujeitas ao movimento e à temporalidade. Gego morre em 1994. E, para não morrer, nos deixa suas tramas de arames finos num espaço inesgotável. | |
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