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Opá Osanuin Gbegá
1995. Magnífico cetro da vegetação com serpentes. Nervura de palmeira, couro, búzios e contas, 91x43x12 cm. Foto: Fernando Chaves





Bimestre Didi:tradição e contemporaneidade


Por Juana Elbein dos Santos

Didi é um sacerdote-artista.

Expressa, através de criações estéticas, arraigada intimidade com seu universo existencial onde ancestralidade e visão-de-mundo africanas se fundem com sua experiência de vida baiana.

Tradição e contemporaneidade, herança de antigas civilizações, replantadas e recriadas. 'Evoluir sem perder a essência', nas suas próprias palavras. Completamente integrado com o universo Nagô de origem Yorubana, revela em sua obra sua inspiração mítica, formal, material. A linguagem Nagô com a qual se expressa, é um discurso sobre a experiência do sagrado.

Os africanos e seus descendentes souberam transplantar, numa coexistência dialética, um singular conjunto civilizatório que permeou toda a sociedade brasileira em bem organizadas associações.

Resultado de diversidades étnicas e de processos sócio-históricos regionais, todo o território e a formação brasileira ficaram profundamente marcados por instituições que transportam e recriam a riquíssima herança africana.

Tal como na África Ocidental, a religião impregnou todas as atividades, regulando e influenciando o viver cotidiano, conservando um sentido profundo de comunidade, preservando e recriando o mais específico de suas raízes culturais.

Os 'terreiros' ou egbe - associações comunitárias - foram, e continuam sendo, centros organizadores da fixação, elaboração e transmissão cultural, núcleos e pólos de irradiação de todo um complexo sistema simbólico.

Neles se continua e renova a adoração das entidades sagradas, a tradição dos orixás e dos ancestrais ilustres, os egun.

Todo grupo, toda etnia, associação ou comunidade para se constituir como tal, deve estabelecer modos de comunicação.

A complexidade dessa comunicação - gestos, sons, exclamações, ritmos, cores, formas - constitui-se numa linguagem. Essa linguagem compreende uma rede de signos cujos intercâmbios ou relações simbólicas configuram as entidades.

O grupo social expressa assim sua vontade de ser desta ou daquela maneira. O consenso simbólico permite que o grupo se diga a si mesmo. Mestre Didi, integrante assumido de sua comunidade, incorpora por uma decisão até radical as especificidades estruturadoras da linguagem Nagô que lhe permitem realmente dizer-se a si mesmo.

Nas comunidades-terreiro Nagô, o discurso simbólico se realiza fundamentalmente pela prática litúrgica. A linguagem se veicula pela atividade individual e grupal, pelo conjunto de cerimônias e ritos públicos e privados, pela implantação e sacralização, de templos - os ile orixás -, altares - pepele e peji -, objetos e emblemas rituais.

Desse organismo simbólico, vivo e atuante, destacaremos um de seus componentes, a expressão estética visual. Ela se articula com os demais elementos rituais e só poderá ser compreendida em função do todo. Dança, ritmo, cor, conta, gesto, folha, penteado, som, texto, emblemas e objetos se articulam para significar o sagrado. São instrumentos de comunicação que, através de sua forma significante, contribuem para manifestar e transmitir a complexa trama simbólica.

A criação simbólica, apoderando o existir em todo seu âmbito infinito, ultrapassa gerações, conduzindo, transmitindo e transcendendo seu tempo e sua origem. Manifestar e conscientizar o complexo mundo semântico Nagô, sua memória e continuidade que permeia toda a obra de Mestre Didi, é prioritário para aproximarmos à linguagem de suas esculturas. A obra de Mestre Didi confere existência a um plural universo simbólico neo-africano que se cria e recria na multiplicação de formas e sentidos.

Numa poderosa linguagem suas obras contribuem para atualizar a visão-de-mundo, herdado e reelaborado, expandindo-se para fora de sua comunidade inicial, universalizando-se.

O símbolo é uma realidade que transcende. Um búzio, uma palha, uma conta, um ritmo, transcende seu conteúdo fora do tempo e do espaço. Selecionado e aceito pelo consenso do grupo inicial para representar uma necessidade, uma carência, uma subjacência, se projeta fora do tempo; veiculado pelas gerações, se constitui em signo de comunicação, em uma referência que singulariza: emanando do pacto inaugural, transcende no tempo.

As obras de Mestre Didi têm o poder de tornar presente a linguagem abstrato-conceitual e emocional elaborada desde as origens pelos seus antecessores. Ela tem o poder de tornar presente os fatos passados, de restaurar e renovar a vida. Contribui para reconduzir e recriar todo o sistema cognitivo emocional do egbe, tanto em relação ao cosmos quanto à realidade humana.

Mestre Didi executa objetos rituais desde sua infância e adolescência. De antiga linhagem Ketu, foi iniciado no culto do orixá Obaluaiyê que, juntamente com orixá Nanã e Oxunmarê, constituem o panteão da Terra, inspiração maior de sua obra. Como Assogbá, confirmado pela famosa Iyalorixá Aninha, foi preparado e incumbido da função e responsabilidade de continuar a herdada tradição da casa de Obaluaiyê. Como sacerdote ficou incumbido de executar e sacralizar todos os emblemas rituais de seu culto. Continua-se assim um fundamental traço africano.

O caráter sagrado de um emblema é dado através de cerimônias especiais mediante as quais poderes místicos específicos lhe são transferidos. Não são, portanto, objetos-divindades, fetiches onipotentes que controlam adeptos. São emblemas preparados e aceitos como símbolos de forças espirituais.

Os objetos não são apenas representações materiais, mas emblemas essenciais em que o sagrado está representado. O adepto não se inclina diante da madeira, porcelana, barro, palha ou pedras, mas diante do abstrato-sagrado, da mesma maneira em que o católico não adora a imagem material de santos e crucifixos, mas a essência mística que simbolizam.

Os objetos sagrados - sejam os que formam parte dos altares ou os que paramentam as sacerdotisas manifestadas - expressam aspectos estéticos que integram o complexo ritual. O conceito estético é utilitário e dinâmico. O belo não é concebido como um mero prazer estético, mas participa de todo um sistema. Os objetos têm uma finalidade e uma função. Expressam categorias, diferentes qualidades, componentes de um todo, são ativos indutores de ação. Portadores e presentificadores de forças místicas, estimulam a memória grupal e o processo de adoração.

A arte africana está fundamentalmente associada à religião. Não é estranho, pois, que nas comunidades afro-brasileiras se repita esta modalidade. A manifestação do sagrado expressa-se por uma simbologia formal de manifestação estética.

Já dissemos que os objetos rituais são componentes de um todo. Por sua vez, os diversos elementos que constituem um emblema não devem ser compreendidos em separado. Nas obras de Mestre Didi, os búzios, contas e palha, por exemplo, fora de seu significado próprio, integram uma simbologia que contribuem para expressar. Os elementos que as ornamentam ou os materiais com que são executados têm desde logo um significado autônomo. É precisamente por estas qualidades, que lhes são próprias, que são anexados e combinados para formular a simbologia mítica, renovada nas criações de Mestre Didi. Certos materiais, utilizados em diferentes trabalhos, estabelecem uma determinada conotação que lhes é comum. A simbologia autônoma de uma obra é determinada por sua vez e adquire sua função mítica por participar de um sistema em que é organizada a manifestação do sagrado.

É freqüente encontrar, na história comparada das religiões, a utilização repetida de certos emblemas. A lua, o arco-íris, a serpente, o relâmpago, os peixes, as cabaças, as conchas, certas pedras e metais, suásticas, estrelas e cruzes se repetem e reinterpretam desde tempos proto-históricos.

Desde os ciclos básicos de eterno retorno, imortalidade e fertilidade, significados relacionados com controle, coesão e estabilidade social, até os mais manifestos conteúdos de heroísmo, glória, riqueza, incorruptibilidade, soberania, toda uma gama de mecanismos e símbolos se exprimem e se elaboram através de ritos e cerimônias nas quais objetos e emblemas participam ativamente.

Os emblemas encerram em si mesmos um 'microcosmo' que, compreendido, pode ajudar-nos a inferir todo o sistema religioso-estético de uma determinada comunidade.

Não é possível definir com uma fórmula intelectual, o processo da criação de objetos litúrgicos ou criações inspiradas neles, assim como não é possível compreender o sagrado ou o processo de sacralização e seus desdobramentos em criações estéticas mediante uma simples equação.

Cada manifestação cultural se expressa simultaneamente através de conteúdos aparentes, abertos, visíveis, ou manifestos em um nível consciente e de conteúdos latentes, ocultos ou reprimidos no nível inconsciente. A religião, a mitologia e a arte são os veículos mais sensíveis através dos quais uma cultura manifesta seus conteúdos e necessidades latentes.

O místico e o artista são iniciados que aprendem a manejar seu especial aparato sensitivo que lhes permitirá ser os coletores mais receptivos e originais de uma comunidade. Ao resumir suas experiências e inquietudes nas 'obras-símbolos' criam os 'microcosmos' - a que já nos referimos - de todo um sistema cultural.

São eles depositários dos mais ocultos conflitos de nosso mundo presente e passado, gigantesco arquivo onde parte da nossa memória ancestral - inconsciente coletivo - se elabora e transmite. Neles se dramatizam, através de sua trama racional, os símbolos de uma cultura. É a expressão estética que 'empresta' sua matéria para que o mítico se revele.

A religião e a arte, sejam mancomunadas e/ou separadas, veiculam e sublimam social e individualmente os esquemas inconscientes de uma comunidade em determinado momento histórico.

Os mitos nos cultos afro-brasileiros não são, apenas, referências a um passado histórico. Os mitos são revividos, dramatizados. São meios de comunicação e expressão: aqui e agora.

A simbologia com que essas manifestações se expressam permitem ao observador participar de uma experiência estética que o aproxima de um universo tradicional.

A criatividade de Mestre Didi se inscreve na vertente mitológica das culturas. Essa energia de projeção mítica captura de maneira singular os elementos estáveis que constituem uma cultura.

A noção 'obra de arte' é uma concepção específica do mundo ocidental. Outras culturas, como a Nagô que nos ocupa, criam formas visuais e espaciais que foram destinadas primordialmente a manifestar relações espirituais, míticas ou místicas. O estético a serviço do espiritual. Esse potencial místico impregna as obras e contribui para magnificar o sagrado.

Mestre Didi é porta-voz orgânico de sua tradição. Para além do formal, expressa o significado, o sentido - os elementos estáveis de que falávamos - de herança milenar.

As obras não se limitam, portanto, a significar formas e cores tradicionais, mas através delas alcançar as subjacências absolutas do 'religare', homem e cosmos, homem e natureza, homem e estrutura comunitária, homem e linhagem, dinastia, ancestralidade, homem e continuidade existencial.

As obras do Mestre Didi estão imbuídas de uma consciência incorporada quase geneticamente, da relação do homem com a Terra.

Suas formas espaciais se combinam de múltiplas maneiras para expressar o essencial desse 'religare' com a sacralidade da vida.

A arte escultórica de Mestre Didi se reveste de uma total liberdade face às expressões estéticas da civilização ocidental. A prática dessa liberdade está ancorada na sólida integração identitária com os valores de sua herança cultural. A criatividade emerge de seu próprio universo, do ethos e do eidos transmitidos, incorporados medularmente no seu existir. Isso lhe permite circular nas diversas culturas, selecionando traços e elementos que, incorporados a sua própria visão e consciência, permitem fortalecer ainda mais seu próprio imaginário.

Essa liberdade lhe permite desenvolver, a partir de emblemas rituais, um amplo universo mítico de criações que, sem ser propriamente de inserção ritual, continuam carregadas do mundo espiritual e mítico recriando a cosmogonia e teofania de tempos pré-líticos.

A originalidade que caracteriza o trabalho de Mestre Didi se deve fundamentalmente à fidelidade, convicção e fé na sua tradição; constituem seu fundamento intelectual e estético. Essa autenticidade lhe permite mover-se com liberdade no mundo das artes ocidentais.

A anunciada 'morte da arte', com o desaparecimento progressivo das religiões, decorrente do evolucionismo ocidental, se mostra incompatível face à ressurgência e às elaborações de expressões estéticas de sociedades tradicionais. Uma história linear da arte, evolucionista eurocêntrica, não é capaz de dar conta da criatividade que permeia toda a história da humanidade com sua inúmera diversidade étnico-cultural.

A história da humanidade não é apenas a história linear inventariando repertórios cronologicamente sucessivos de acontecimentos e mentalidades convenientemente interpretados conforme interesses hegemônicos da civilização ocidental.

Na realidade, cada vez mais o mundo se redescobre. Construções destinadas a dar respostas - intelectuais ou míticas - à aparição e devenir do homem, desde os princípios mais remotos da humanidade, se estenderam por todo o planeta constituindo-se em civilizações e culturas paralelas, sucessivas, simultâneas ou coexistentes.

As formulações estéticas de sociedades não-ocidentais surgem de uma humanidade anterior à 'história da arte' metódica e cronológica, como é difundida por textos eruditos. Essas manifestações espelham princípios inaugurais, atemporais, necessidades primordiais e sensibilidade universal.

Despojada de apreciação crítica evolucionista, a obra escultórica de Mestre Didi se insere em uma arte de vanguarda - por sua total liberdade, independência e originalidade - ancorada na dinâmica de uma cultura tradicional e contemporânea.

Cada escultura pode ser considerada na sua individualidade, como forma e como sentido, ambos enraizados na sua herança cultural, mas é o conjunto da obra que nos leva a refletir e destacar sua originalidade estética de inspirada criatividade pessoal.

Nenhuma escultura é uma inspiração arbitrária; elas revelam a autenticidade do artista identificado com a sua ancestralidade, mas que formaliza suas idéias conforme sua própria sensibilidade. Ele atualiza a visão teológica, cósmica e mítica de seus antepassados. Resultado de antigas memórias introjetadas milenarmente, vivenciadas - experiência existencial -, Mestre Didi conduz com originalidade a continuidade emocional do complexo africano-brasileiro, permeando-o e renovando-o com singularidade.

As obras de Mestre Didi carregam a experiência, o hálito, respiração, dos mais antigos aos mais novos, de geração em geração; condensando a história pessoal e a capacidade de transcender, veicula intencionalmente, para além de sua própria vida, a energia mítica do sacerdote-artista.

Ao assumir a experiência ancestral de sua comunidade, recriando-a, sua obra transmite um sentimento de atemporalidade por quanto presentifica a anterioridade de origem somada ao vital impulso de constante regeneração. A multiplicidade das relações míticas e formais se reinventam e desdobram na multiplicidade de suas formulações espaciais.

A aproximação às criações do artista, apesar de não tratar-se de emblemas rituais sacralizados, se realiza em dois níveis: no manifesto, no qual o ethos da obra se atualiza como forma estética em si, como forma simbólica de equação intelectualmente interpretada, e no nível latente veiculando conteúdos abstratos de mistérios litúrgicos e existenciais que não são intelectualizados ou verbalizados, mas que, ocultos por detrás do ethos manifesto, induzem a participar do universo emocional - onto-poesia, energia mítica, eidos - de elaborações inconscientes nas quais são sublimados nosso transcender e nossas fantasias básicas de imortalidade individual e coletiva.

Mergulhar no ethos e no eidos da obra de Mestre Didi nos leva a nos aproximarmos de aspectos fundamentais da tradição Nagô.

A cultura Nagô constitui um sistema essencialmente dinâmico de inter-relações. Os elementos-signos que compõem os emblemas rituais e, por extensão, as esculturas de Mestre Didi, nos revelam o sentido aproximado das relações manifestas e latentes.

Dizíamos que o ethos é o enunciado da linguagem, a configuração estética, o estilo. O ethos, significante de emblemas e esculturas, constitui por assim dizer "a matéria" que oculta e revela a existência do discurso subjacente que carrega o poder da energia mítica; é através do eidos que os poderes míticos se apresentam simbolizados.

O discurso étnico das obras de Mestre Didi - formas, cores e matérias - transporta, latente, o conhecimento vivido, a emoção, a afetividade, as suas elaborações mais profundas passadas e presentes, o conjunto de teofanias evocadoras, restituindo e renovando criativamente os princípios inaugurais e a linguagem de sua tradição.

Sendo o discurso Nagô aberto e plural, as relações simbólicas são múltiplas e as subjacências emocionais, propulsoras de riquíssimas formas estéticas e poéticas. Daí o caráter altamente analógico e simbólico das esculturas, necessariamente expressas através de formas plásticas e dinâmicas, conduzindo e significando as múltiplas relações do homem com seu meio ético, social e cósmico.

Mestre Didi absorveu esses valores e modos desde sua infância. Iniciado aos 8 anos de idade, conviveu com mestres africanos e desenvolveu sua vida iniciática e gosto estético em bem-estruturadas comunidades Nagô, onde se continua até hoje a religião e tradição cultural legados pelos seus fundadores.

Integrado medularmente ao universo Nagô africano-brasileiro que mamou dos peitos das mães africanas, cresceu e se aprofundou, através de sucessivas iniciações, nos mistérios transcendentes da vida e da morte, nos segredos das identificações com os espíritos ancestrais - os egun - e com as entidades sagradas - os orixá.

Desde pequeno também aprendeu com os mais antigos a compreender e manipular materiais e formas, objetos e emblemas que presentificam as entidades sagradas, em 'assentamentos', altares, nas mãos das sacerdotisas; aprendeu a executá-los e, mais tarde, a consagrá-los.

Na tradição religiosa Nagô as entidades - orixás ou egun - não possuem representação antropomórfica. A entidade suprema Olorun não possui nenhuma representação material.

Princípio dos princípios que torna possível e rege toda a existência, detém e recicla os três princípios fundamentais que se expressam através do branco, do vermelho, do preto e de suas nuances ou combinações.

As cores são portadoras dos princípios-poderes simbolizando as funções que lhes foram atribuídas.

O iwá pertence ao domínio do branco; é o poder que permite a existência genérica; é veiculado por diversos elementos como giz (éfun), prata, chumbo e também pelo ar, hálito, pela respiração (émi) que indica a presença da vida.

O axé pertence ao domínio do vermelho; é o poder de realização que dinamiza a existência e permite que ela advenha; é veiculado pelo sangue humano ou animal, pelo azeite de dendê, pelo osun (pó vermelho vegetal), pelo cobre, pelo bronze.

O abá, do domínio do preto, é o poder que outorga propósito, dá direção e finalidade; está associado à interioridade e aos mistérios que nela acontecem; é veiculado pelo ferro, índigo (waji) e está presente nas cavidades escuras no interior dos corpos.

O amarelo é considerado simbolicamente como uma variedade do domínio do vermelho, assim como o azul e o verde, em determinados contextos, são variedades do preto. Por extensão, certos lugares, objetos ou partes do corpo impregnados de determinadas cores, como o coração, certas raízes, folhas, pedras e marfim, são portadores dos princípios mencionados.

Não existe um único elemento, conforme a conceituação Nagô, que não seja categorizado através das cores-significados. Todos os membros do egbé (comunidade-terreiro), vestes e objetos rituais trazem, de alguma maneira, as marcas dessas cores, pintadas ou representadas por tiras ou pedaços de pano, couro, contas, sementes, búzios ou mesmo pelas substâncias com que vasilhas e emblemas são executados.

Presença, transmissão e redistribuição das cores-poderes estão presentes em todo o vasto repertório material - assentamentos, altares, complexos emblemas, protótipos - e marcam todos os rituais, relacionando a situação do ser no seu contexto social, no seu relacionamento com o mundo espiritual e mítico e com os outros elementos que constituem o universo. As cores-signos tornam manifesto o significado de cada elemento que dá conotação específica a cada ritual. Assim, por exemplo, o luto significando transcurso de vida individual para a existência genérica, domínio do branco, marca seu significado nos ritos mortuários - axexê - nas vestes dos participantes e em todos os paramentos, que devem ser totalmente brancos.

Assim como Olorun - cujo nome é apenas pronunciado em situações de grande fundamento religioso - não possui representação material, os orixás, agrupados em panteões, também não possuem representação antropomórfica.

Os orixás, pelos poderes outorgados e distribuídos por Olorun, são patronos dos elementos que constituem o universo - água, terra, ar, fogo -; patronos da natureza - oceanos, rios, fontes, lagoas, vegetação, mato, floresta -; são modelos reguladores de fenômenos terrestres - tespestade, trovões, relâmpagos, chuva, temperatura, epidemias -; patronos do acontecer humano e social - maternidade, nascimento, morte, dinastia, caça, pesca, agricultura, medicina, guerra.

Os orixás são representados por emblemas, por formas metafóricas e por materiais do mundo animal, vegetal e mineral, cujas cores dão significado às atribuições das entidades que compõem a constelação mítica e projetam a visão do mundo Nagô.

Seguindo a tradição religiosa, as esculturas do Mestre Didi contribuem para espelhar relações abstrato-conceituais, não exibindo representações antropomórficas. Revelam assim sua forte vinculação às expressões dos panteões recriando suas formas metafóricas, utilizando os materiais e as cores-signos prescritos.

Destacam-se nas obras do artista motivos que se repetem e recriam permanentemente, quase todos referenciados ao poder da Terra de onde surgem os elementos consubstanciados com esse poder, símbolo de morte e renascimento.

Terra fecundada, umedecida, terra-lama, matéria-prima origem do ser humano, que se cobre de vegetação, floresta e grandes árvores, magníficos altares-signos que marcam a presença dos ancestrais contidos nas suas entranhas.

O alto sacerdote do culto aos ancestrais-egun, o Mestre Alapini e o sumo sacerdote do culto aos orixá agrupados no panteão da Terra, o Mestre Assogbá, extravasam sua vocação sacerdotal e artística na multiplicação de emblemas e obras de arte onde sabedoria e beleza se mancomunam.

Os orixás Nanã, Obaluaiyê e Oxumnarê pertencem ao panteão da Terra, zelado pelo Assogbá. Por extensão, devido às relações míticas, também fazem parte o orixá Exú - princípio dinâmico - que acompanha cada orixá e tudo o que existe, e o orixá Ossanyin, patrono da vegetação.

A Terra, Iya-nlá, a grande mãe, é associada a Nanã, orixá dos primórdios da criação. É a mais antiga entidade da constelação mítica. Objetos, emblemas, cantigas, saudações e mitos que nos remetem ao seu culto e liturgia, destacam três elementos com os quais está consubstanciada: água, lama e morte.

Água e lama estão associadas à fecundidade, à maternidade. Seu significado como genitora é revelado no seu próprio nome: Na, raiz proto-sudânica ocidental significando 'mãe'. Esse aspecto maternal, sua relação com lama - terra úmida - que confere existência, a coloca no domínio do branco. Ela recebe em seu seio os mortos que tornarão possíveis os renascimentos.

Esse aspecto de conter e processar coisas em seu interior, esse segredo ou mistério que se opera em suas entranhas escuras, expressa-se pela cor azul-escuro, do domínio do preto que a representa. Se por um lado seu aspecto de força genitora a faz pertencer ao branco manifesto em suas saudações

Nanã funfun lélé
Nanã branca, branca neve

Por outro lado, o fato de ela ser um continente associado com processo e interioridade, conecta-a ao preto.

As cores que a representam são uma combinação de partes iguais de branco e de azul-escuro e é assim que, no colar que a distingue, as contas azuis se alternam com as contas brancas.

Os mortos e os ancestrais são seus filhos, simbolizados pelas hastes de àtòrì (Glyphaea Lateriflora), de odán ou pelas nervuras de palmas de palmeiras, enfeitados e ornamentados. Os ancestrais, representados coletivamente por um feixe dessas nervuras, constituem o corpo, o elemento básico, não só do Xaxará, emblema de Obaluaiyê, filho mítico de Nanã, mas também de seu próprio emblema, o Ibiri. Enquanto o Xarará 'é' Obaluayiê, o orixá-filho, assumindo a representação dos espíritos da terra, o Ibiri é uma representação transferida de Obaluaiyê, o filho contido por Nanã e simbolizando seu poder genitor.

Nanã se caracteriza, quando se manifesta em sua sacerdotisa, por carregar o Ibiri na mão direita. Esse cetro é a representação mais importante de Nanã. Segundo um de seus mitos de fundamento, "ela nasceu com ele, ele não lhe foi dado por ninguém".

Diz o mito: "Quando ela nasceu, a placenta continha o opá. Uma vez nascido, uma das extremidades do opá se enrolou e cobriu-se de cauris e de finos ornamentos. Então eles o separaram da placenta e o colocaram na terra".

O Ibiri, como o Xaxará (Sàsàrà) é feito - como já mencionamos - com um atado de nervuras de palmeira - símbolos dos oku-orun, os mortos - ornamentado com tiras de couro, búzios e contas azuis-escuras e brancas. Devem ser confeccionados por um sacerdote altamente qualificado, preparado para manipular representações tão perigosas. Enquanto está sendo confeccionado, do mesmo modo que para a do Sàsàrà, preceitos especiais devem ser observados.

A relação de Nanã com os oku-orun (descendentes existentes em seu interior) e com a fertilidade (descendentes nascidos de seu 'ventre' no mundo) está simbolizada pelo uso abundante de cauris ou búzios. Os cauris pertencem ao branco, e vamos introduzir aqui um novo aspecto em relação ao branco: os cauris não simbolizam o branco genérico - uma longa tira contínua, - representado pelo alà, mas porções do branco, seres individualizados, unidades que resumem ou sintetizam a interação dos dois poderes genitores. Os cauris, desprovidos de seus moluscos, constituem os símbolos por excelência dos dobles espirituais e dos ancestrais. Sua significação é similar à das sementes.

O significado dos cauris também é semelhante ao das nervuras das palmas do igui-opé. Grupos de cauris - como os feixes de nervuras - fazem parte da parafernália de Nanã. Filas de cauris enfiados dois a dois, em pares opostos, formam longos colares chamados Brajá ou Ibajá usados a tiracolo e cruzando-se no peito e nas costas. O uso dos brajá, levados pela sacerdotisa, cruzando-se em diagonal na frente e atrás, indica claramente que os cauris-ancestre-descendentes são o resultado da interação da direita e da esquerda, do masculino e do feminino, e que se referem tanto ao passado, ao poente (atrás) como ao futuro, à nascente (na frente).

Por causa do grande número de cauris que Nanã usa, é considerada aquela que é ou possui os cauris, associados à idéia de abundância e riqueza. Nanã é patrona da fertilidade e da agricultura.

Por causa de seu poder, a Terra é invocada e chamada a testemunhar em todos os tipos de pactos, particularmente nas iniciações e em relação com a guarda dos segredos. Em caso de litígio ou traição, acredita-se que a Terra fará justiça:

Ki ilé jeerí
Que a Terra testemunhe.

É nessa capacidade que Nanã é qualificada deOrixá da Justiça.

Nanã, manifestada em sua sacerdotisa, dança com o Ibiri, colocando-o sobre as duas mãos, imitando o movimento de ninar uma criança. Um canto de louvor que expressa seus significados é entoado nessa ocasião:

Ibiri o (dára), Ibiri é precioso
Xaalarê, Orixá da Justiça
Nanã olú odô, Nanã, espírito dos mananciais
Xaalarê, Orixá da Justiça
Olowó xe-in xe-in, Poderosa dona dos cauris

Xe-in xe-in é uma palavra onomatopaica que representa o som dos cauris.

Obaluaiyê, filho mítico de Nanã, é o princípio masculino da Terra. Seu nome se compõe de Oba-Olu-Aiyê, Rei-Senhor de todos os espíritos do mundo. É cultuado e invocado juntamente com Nanã. É representado pelo Xaxará, cujo corpo formado pelos feixes de nervuras da palmeira revela claramente ser a imagem coletiva dos espíritos ancestrais.

Obaluaiyê, fortemente relacionado com a Terra de onde emergem os troncos e ramos das árvores, transporta os princípios do preto, vermelho e branco. De fato, as três cores o representam. Não são cores-matizes, qualidades do preto ou vermelho, mas cores nítidas, puras. Seus colares são formados de contas pretas alternando-se com contas brancas, ou vermelhas e brancas, ou pretas e vermelhas, denotando que veicula o poder de existência, de realização e confere finalidade. Porém, sua matéria de origem provém da Terra e como tal ele é o resultado de um processo interior; seu significado profundo está associado com o preto, com o segredo contido no interior do 'ventre fecundado' da Iya-nlá e com os espíritos contidos nela que são seus irmãos e dos que ele é o símbolo. O colar que o identifica por excelência é o laguidigbá, cujas contas feitas da dura casca da semente existente dentro da fruta do igui-opé - a palmeira - são pretas.

Como Nanã, Obaluaiyê se distingue pela abundância no uso de cauris, não só nos longos colares brajá mas também distribuídos no conjunto de sua vestimenta e paramentos, acentuando sua significação de filho-ancestre. Uma cantiga mostra-o claramente:

Owó nlá banba, Dinheiro (cauris) grande, imenso
Ojixé owó nlá banba, Mensageiro de de riqueza
Owó nlá bànbà, Dinheiro grande, imenso.

É o patrono dos cauris e o conjunto de dezesseis búzios (na realidade dezesseis + um) que serve de instrumento ao sistema oracular érindílogun lhe pertence.

Um dos aspectos mais notáveis de Obuluaiyê e que o distingue completamente dos outros orixás é o fato de que, quando ele se manifesta em suas sacerdotisas, deve ser recoberto por uma vestimenta sagrada de 'palha da Costa', de ráfia africana conhecida nos cultos pelo seu nome Nagô de ikô. O emprego prescrito e esclusivo da ráfia é tão importante que, não havendo iko no Brasil, não foi mesmo possível, em virtude da profunda simbologia que lhe é atribuída, adaptar ou transferir seu uso a produtos locais similares, como outros elementos rituais foram adaptados. Até hoje, o ikô é importado e não admite substitutos nativos.

O ikô é um material de grande significado ritual. É essencial e participa de quase todos os ritos ligados à morte e a ancestralidade. A presença do ikô é indispensável em todas as situações em que se maneja com o sobrenatural e cuidados especiais devem ser tomados. O ikô é a fibra da ráfia obtida de palmas novas de igui-ogorò ou Raphia Vinifera. As fibras devem ser extraídas das talas do olho da palmeira quando novas e erguidas, antes de se abrirem e se curvar. A presença do ikô indica igualmente a existência de alguma coisa que inspira um grande respeito e medo, alguma coisa secreta que só pode ser compartilhada pelos que foram especialmente iniciados.

O fato de Obaluaiyê cobrir-se de ikô e se ornar com cauris mostra claramente que nos encontramos em presença de um orixá de poder extraordinário relacionado com a morte, de difícil controle; que ele inspira respeito; que constitui uma presença ameaçante possuidora de algo interior, vedado, secreto, misterioso e que, conseqüentemente, deve ser coberto e protegido. Impinge doenças epidêmicas, a varíola, particularmente as doenças de pele e outros males que dão muita febre. Controla esses castigos e, sendo ele quem os impinge, é o único que tem o poder de os suprimir, prevenir e manter afastados.

Este é o aspecto mais feroz do vermelho, estreitamente associado a violento calor e por isso é chamado Baba Igbona = pai da quentura, nome metafórico composto com palavra ina, fogo.

O vermelho o irmana a Xangô (Sàngó), orixá patrono do trovão, do fogo e da dinastia real, de quem é o irmão mais velho segundo os mitos.

É com sua vassoura sagrada, o Xaxará, que Obaluaiyê limpa, varre as doenças e também as impurezas e os males sobrenaturais.

Detém e lidera o poder dos espíritos e dos ancestrais que o seguem e oculta sob a ráfia o mistério da morte e do renascimento, o mistério de gênese.

Oxunmarê, grande píton mítico que, levantando-se das profundezas da Terra, atinge o firmamento, atravessa-o de um lado a outro e volta a penetrar a Terra. O arco-íris o representa. Oxumnarê, que transporta em seu corpo todos os matizes, representa as múltiplas combinações possíveis dos princípios-poderes.

Oxumnarê é cultuado no mesmo templo - ilé - que Nanã, sua mãe, e Obaluaiyê, seu irmão, e cada um é individualizado graças a um 'assento' separado. Como Nanã e Obaluaiyê, ele se paramenta com búzios, com os brajá e com o colar laguidigbá, tornando manifesta sua relação com os conteúdos da terra e dos ancestrais. Duas cobras de ferro, domínio do preto, representam-no.

Dada sua importância na prática ritual e a sua significação, destacamos Ossanyin, o orixá patrono da vegetação, das folhas e de seus preparados.

As folhas, nascidas das árvores, e as plantas constituem uma emanação direta do poder sobrenatural da Terra fertilizada pela chuva e, com esse poder, a ação das folhas pode ser múltipla e utilizada para diversos fins. Cada folha possui virtudes que lhes são próprias e, misturadas a outras, formam preparações medicinais ou rituais de grande importância. Nada pode ser feito sem o uso de folhas.

As folhas, como as sementes, são e representam o procriado. Elas veiculam o preto, o poder do oculto. Ossanyin é representado pela cor verde, uma qualidade de preto.

O poder das folhas, que traz em si o poder do que nasce, do que advém abundantemente, é um dos veículos mais poderosos. Em combinações apropriadas, elas mobilizam e outorgam finalidade a qualquer ação ou ritual; daí a necessidade constante de seu uso.

Por conseguinte, Ossanyin possui um poder ao mesmo tempo benéfico e perigoso, a depender dos vários empregos das folhas. Seu culto é mais ou menos secreto, e mesmo que não constitua uma sociedade secreta, seus ritos não são públicos.

Ossanyin é representado por um emblema de ferro. Uma barra central, rodeada de outras seis, que se erguem diagonalmente em sua volta com um pássaro de ferro sobreposto, simboliza uma árvore de sete galhos com um pássaro em seu topo. O ferro, condutor do princípio do preto, confirma a relação de Ossanyin com o preto. Por outro lado, o pássaro que o simboliza, reforça a relação folha-descendente e sua simbologia em relação a elemento procriado.

Se me permiti alongar-me no exame da complexidade do panteão da Terra e de suas representações emblemáticas é devido a que toda a obra de Mestre Didi emerge dessa rica simbologia.

Árvores se multiplicam, Xaxará, Ibiri e emblemas de Ossanyin se entrelaçam com serpentes matizadas de arco-íris, combinando configurações retas, curvas e espiraladas, magnificando materiais, cores e texturas para homenagear o transcurso da existência.

Mestre Didi nomeia suas esculturas em língua Nagô para melhor conceitualizar suas obras e o colocam como fiel exponente da vertente mítica de uma arte de vanguarda.

Destaca-se entre as obras inspiradas na simbologia das árvores, a escultura.Iwin Igui olá-nlá, Majestoso ancestral da árvore, de 315 cm de altura de cujo alongado tronco - Xaxará se destacam dois ibíri marcando o poder de Nanã, terra fecundada. De seus ramos laterais desfiam-se feixes de palha da Costa - o ikô já mencionado anteriormente -, assinalando a presença do espírito ancestral da árvore; presença traduzida pelo conjunto das nervuras das palmas de palmeira que, reunidas, constituem-se na própria estrutura da grande árvore paramentada com braceletes de tiras de couro, profusão de contas, sementes e búzios, signos-fertilidade, poder de renascimento.

A simplicidade da forma, retas e curvas combinando-se no espaço, em original harmonia com os materiais utilizados, em fim, toda a obra, como seu nome indica, transmite dignidade e majestade.

Configurações, retas, curvas, espiraladas, preenchendo e vazando o espaço, simplicidade de concepção e liberdade na combinação de técnica, cores, texturas e materiais tradicionais, transmitindo original criatividade estética, distinguem toda a obra de Mestre Didi.

Dan - 'a serpente do além' -, Idilé-Aiyê - cetro combinando os emblemas do panteão da terra -, Opá Ossanyín Gbega - 'magnífico cetro da vegetação com serpentes, o imponente Opá-Exin - 'grande cetro da ancestralidade', são alguns de seus trabalhos que nos remetem aos ignotos segredos dos poderes da terra.

Algumas obras do artista, sem surgirem diretamente dessa emblemática, merecem especial comentário por suas inter-relações simbólicas e estéticas.

Destacam-se entre outras: Eyé-nlá - grande pássaro, inspirado nas mães ancestrais e no seu poder de transmutação - ; Opá-Xorô - recriação do cetro do mistério, emblema inicial da gênese do mundo que separa e une o órun, o além, e o aiyê, este mundo; Ogue Arolê - chifre mítico do caçador herdeiro dinástico, sobre o qual voltaremos mais adiante; Exú Amuniwa, que por seu significado distingue-se das obras do artísta, por ser executado em barro reforçado com uma liga tradicional e cimento.

Exú é uma das entidades fundamentais e mais complexas, cripto-símbolo da tradição Nagô.

É o princípio dinâmico do sistema cultural; acompanha tudo o que existe, gerando múltiplas configurações. Desde representações que explicitam seu nascimento, até as infinitas formas que expressam as funções na sua expansão no universo, a cada uma dessas atribuições correspondem figuras, objetos e diversidade de materiais.

Neste trabalho, limitar-me-ei a comentar somente aqueles aspectos do orixá Exú, implícitos e recriados na escultura de Mestre Didi.

Exú, primogênito da humanidade, emerge da lama primordial, resultado e condutor do processo de geração, consubstanciando-se com os ancestrais e com todas as entidades do panteão da Terra.

De fato, Exú não só está relacionado com os ancestrais femininos e masculinos e com suas representações coletivas, mas ele também é um elemento constitutivo, na realidade o elemento dinâmico, não só de todos os seres sobrenaturais, como também de tudo o que existe.

É um princípio e, como os princípios e poderes que ele representa e transporta, participa forçosamente de tudo. Princípio dinâmico e de expansão de tudo o que existe, sem ele todos os elementos do sistema e seu devir ficariam imobilizados, a vida não se desenvolveria.

Cada entidade, cada coisa e cada ser tem seu próprio Exú.

Cada orixá possui seu Exú, com o qual ele constitui uma entidade. Na realidade, é o elemento Exú de cada um deles que executa suas funções.

A função de Exú consiste em solucionar, resolver todos os "trabalhos", encontrar os caminhos apropriados, abri-los ou fechá-los e, principalmente, fornecer sua ajuda e poder a fim de mobilizar e desenvolver tanto a existência de cada indivíduo quanto as tarefas específicas atribuídas e delegadas a cada uma das entidades sobrenaturais.

Exú é um fator de expansão simbolizado pelo okotô, uma qualidade de caracol similar a um pião que, apoiando-se no seu pé, roda "espiraladamente", se abre a cada revolução até converter-se numa circunferência aberta ao infinito. Exú promove expansão e crescimento.

Essa capacidade dinâmica de Exú, esse poder que permite a cada ser mobilizar e desenvolver suas funções e seus destinos é conhecido sob o nome de agbára. Exú é o Senhor-do-poder, Elegbára; ele é ao mesmo tempo seu controlador e sua representação.

Olorun delegou esse poder a Exú ao entregar-lhe o Adô-iran, a cabaça que contém a força que se propaga. O Adô-iran constitui um de seus principais emblemas e está presente nos 'assentos' e em uma escultura de Mestre Didi, sob a forma de uma cabaça de longo pescoço apontando para o alto que Exú carrega em sua mão. Exú só precisa apontar seu àdó para transmitir a força inesgotável que tem.

Sendo interação e resultado, Exú está profundamente associado à atividade sexual. O falo e todas as suas formas transferidas, tais como seu gorro tradicional com sua longa ponta caída, os vários estilos de penteados, em forma de longa trança ou rabo de cavalo caindo pelas costas, seu Ogó ou maço, sua lança, são símbolos de atividade sexual e de reprodução.

As numerosas cabacinhas, representação deslocada dos testículos, sublinham ainda mais claramente sua preocupação com a atividade sexual e descendência. Este aspecto de Exú, provavelmente o aspecto mais comentado, é aquele que mais escandalizou os primeiros missionários e viajantes.

Os atributos mencionados sublinham claramente sua relação com atividade sexual e reprodução, tornando-o símbolo da continuidade do homem e da própria civilização.

Sendo a entidade procriada, símbolo de progênie, condensa no seu eu mítico a natureza de todos os princípios. O Iwá, o Axé e o Abá se expressam nas vestes, colares, objetos e emblemas pelas cores-signos do domínio do branco, vermelho e preto.

A escultura Exú-Amuniwá moldada em barro, mostra claramente a relação com sua matéria de origem. Dotado de forma tosca, primogênito inacabado conforme alguns mitos, ergue-se da terra levando em uma mão a Adô-iran - a cabaça de seu poder propagador e na outra sua lança Okó. O deslocamento fálico é ainda caracterizado pelo seu penteado em forma de crista, prolongada por uma trança caindo pelas costas. A cor preta revela a intenção do artista de associar sua escultura Exú-Amuniwá ao domínio dos mistérios que subjazem nos arcanos da Terra. Subjazem também nas lembranças esmaecidas de menino-artista que gostava de fazer figurinhas de barro que colocava em cuias e arrumava sobre imaginários altares.

Remonta também a sua infância, as recordações de toques, danças e paramentos que exaltavam e invocavam, em cerimônias e ritos, o orixá Oxossi, entidade sagrada do antigo reino de Ketú e por isso cognominado Alaketú, rei de Ketú.

As mais antigas comunidades-terreiro consideram-se fundadas por africanos de Ketú. A linhagem dos Axípá foi uma das fundadoras do reino da qual Mestre Didi é hoje seu mais antigo descendente no Brasil e como sacerdote Alapini, implantou na Bahia a comunidade Ile Axípá, voltada ao culto dos ancestrais Egun.

A cor azul com que Oxossi se identifica, esclarece sua pertinência a certa qualidade do domínio do preto. Caçador, está estreitamente ligado a vegetação, mato, floresta, conhecedor de seus segredos.

O símbolo que o representa é um arco e flecha de ferro. Entre seus paramentos figuram os ogue, chifres de touro selvagem, efon, substituído pelos chifres de touro.

Sem aprofundar no simbolismo do chifre, bastante analisado em outros trabalhos, destacamos sua forma de cone - a semelhança do Okotô de Exú.

Outro emblema que caracteriza Oxossi é o Erukurè. É uma espécie de espanador feito com pêlos de rabo de touro presos a um pedaço de couro duro, constituindo um cabo revestido de couro fino e ornado com contas apropriadas e cauris. É um dos principais instrumentos utilizado pelos caçadores e detém poderes sobrenaturais. Tem o poder de controlar e manejar todo tipo de espíritos da floresta.

O emblema de Oxossi tem um significado semelhante ao de Xaxará de Obaluaiyê. Da mesma forma que as nervuras das palmas e as palhas do ikô desfiado representam ancestres ou espíritos das árvores e da Terra, os pêlos do rabo - da parte posterior, do poente, do passado - representam os ancestres, os espíritos de animais e todo tipo de espíritos da floresta.

Na escultura Oguê Arolê sobressai a originalidade do artista, que cria e reinventa um grande chifre - emblema do orixá caçador - carregando o cetro mítico Erukeré, e todo trabalhado com elementos vegetais cobertos de panos, contas e búzios. A estreita relação mítica do caçador com a floresta é evocada através de uma cobra-símbolo deitada a seus pés.

Torna-se claro que informações contextualizando culturalmente as obras não são suficientes nem esgotam as indagações, sentimentos e a emoção que as esculturas nos despertam. Se nos distanciamos dos contextos e das interpretações do discurso étnico e nos desbruçamos sobre o próprio ato criador do artista como indivíduo, poderíamos estabelecer denominadores que nos aproximem à compreensão das motivações que impulsionam criações estéticas em outras culturas.

Já se fez referência à transcendência no tempo de mitos e símbolos e por extensão à atemporalidade da obra de Mestre Didi. O sacerdote incorporou através de uma experiência vivida, mediante um desenvolvimento paulatino, pela transmissão e absorção de poderes e simbologias complexas a todos os níveis da pessoa, os elementos espirituais e místicos do sistema. Aprendeu e introjetou a visão-de-mundo 'desde dentro' de sua comunidade, a nível consciente e inconsciente. O artista ao mesmo tempo, através de elaborações próprias, abstrai dessa experiência iniciática os significados e os significantes simbólicos para transformá-los 'para fora', nas suas configurações estéticas; resultado dessa dinâmica pessoal, sobrepassa o plano litúrgico, redramatizando a sua herança através de suas próprias imágos e subjacências.

Tentando resumir as colocações desenvolvidas ao longo deste trabalho, estimaria reiterar que a aproximação às criações de Mestre Didi se realizam em dois níveis: o manifesto - significante e ethos - em que a escultura pode ser analisada como forma estética em si, como signo de comunicação comunitária, como elo de comunicação entre o artísta e o observador; e o nível latente, condutor dos conteúdos abstratos que participam de mistérios litúrgicos veiculando elaborações inconscientes em que são sublimadas as fantasias básicas da herança cultural milenar e as do próprio criador.

Vale destacar ainda que a comunicação estética, o prazer e a emoção de gozar o belo, não precisa de antecedentes interpretativos, mesmo que aspectos vinculados às latências de obras pouco familiares, escapem ao observador. A emoção é transmitida mesmo desconhecendo-se os significados subjacentes.

O observador se sente participante de uma poética ancestral atualizada.

O processo de realização de emblemas litúrgicos responde a motivações grupais quanto à finalidade e função. Por sua vez, o processo de criação de obras de arte responde a motivações individuais quanto ao impulso do artista que as elabora.

Concluindo, as obras de Deoscoredes Maximiliano dos Santos - Mestre Didi -, inscrevendo-se na vertente mitológica das artes, projetam com originalidade uma energia poética de caráter universal. As concepções estéticas, inspirando-se livremente na simbologia do sagrado inicial de seu povo, projetam com singular sensibilidade a minuciosidade técnica, a profundidade mística, a tradição e a contemporaneidade da existencial criatividade do sacerdote-artista.











































































































































































































































Cronologia



Títulos


1925
Kori Kowê Olukotun, iniciado aos 8 anos de idade no culto aos ancestrais Egun, no Ilê Olukotun, Tuntun, na Ilha de Itaparica, Bahia, Brasil.
1934
Ojé Korikowê Olukotun, sacerdote no culto aos ancestrais, Ilê Agboulá, Ilha de Itaparica, Bahia, Brasil.
1936
Baba L'Osanyin, no Axé Opó Afonjá, pela ialorixá Obabiyi, Eugenia Ana dos Santos, Salvador, Brasil.
1936
Assògbá, supremo sacerdote do culto de obaluaê no Axé Opó Afonjá, pela ialorixá Obabiyi, Eugenia Ana dos Santos, Salvador, Bahia, Brasil.
1968
Balé Xangô, conferido e instalado no templo de Xangô, Oyo, Nigéria.
1975
Alapini, o mais alto grau na hierarquia sacerdotal no Culto aos Ancestrais Egun.
1983
Baba Mogbá Oni Xangô, conferido pelo Aleketu, rei de Ketu, no Palácio de Ketu, Benin.


Exposições individuais


1996
Mestre Didi 80 Anos de Arte, Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador, Brasil.
1994
Mestre Didi, Galeria Prova do Artista no Hotel Sofitel, Salvador, Brasil; Galeria de Arte no Centro Histórico de Salvador, Brasil.
1993
Mestre Didi, Galeria Prova do Artista, Centro Histórico Pelourinho, Salvador, Brasil.
1992
A Presença do Sagrado na Escultura de Mestre Didi, Galeria do Ibeu, Rio de Janeiro, Brasil.
1987
Mestre Didi Memória e Afirmação Existencial, Academia de Letras da Bahia, Salvador, Brasil.
1986
Mestre Didi, Schomburg Center, Nova York, Estados Unidos.
1967
West Brazilian Sacred Arte - Didi dos Santos, Trenchard Hall, Universidade de Ibadan, Nigéria.
1966
Didi - Arte Sacra Afro-Bahiana, Galeria G4, Rio de Janeiro, Brasil.
1965
Didi, Galeria El Altillo, Buenos Aires, Argentina; Didi, Escultura e Emblema de Orixá, Galeria Atrium, São Paulo, Brasil.
1964
Deoscoredes M. dos Santos (Didi), Galeria Ralf, Salvador, Brasil; Emblemas de Orixá de Didi, Galeria Bonino, Rio de Janeiro, Brasil.


Exposições coletivas


1994
O Imaginário Negro das Américas, Pinacoteca de São Paulo, Brasil; Espaço Cultural, 505 Sul, Brasília, Brasil; Os Herdeiros da Noite - Fragmentos do Imaginário Negro, Pinacoteca do Estado de São Paulo para a Secretaria da Cultura de Belo Horizonte, MG Centro de Cultura de Belo Horizonte, Brasil.
1994
Arte e Religiosidade Afro-Brasileira, 46º Feira do Livro, Frankfurt, Alemanha.
1991
Semana Afro-Brasileira, Fundação Cultural de Ilhéus, Brasil.
1989
Maître Didi, Exposição Internacional Magiciens de la Terre, sala especial, Centre Georges Pompidou, Paris, França.
1989
Art In Latin América, Hayward Gallery, Londres, Inglaterra.
1988
Réplica da Escultura Opá Esin, de 12 metros de altura, Largo do Pelourinho, Salvador, Brasil.
1988
A Presença do Sagrado na Escultura de Mestre Didi, sala especial, Escravidão Congresso Internacional, Universidade de São Paulo, Brasil.
1986
Arte Sacra Negra, sala especial, Vitória Hall, Salvador, Brasil.
1984
Tradição dos Orixás Religião e Negritude, Auditório IMACO, Belo Horizonte, Brasil.
1984
Bahia África - África Bahia, Museu de Arte da Bahia, Palácio da Vitória, Salvador, Brasil.
1974
Semana Afro-Brasileiras, sala especial, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil.
1974
Arte Sacra Negra, sala especial, Palácio das Convenções, São Paulo, Brasil.
1973
Mestre Didi Y El Arte Afro-Brasileiro, sala especial, Galeria Rubbers, Buenos Aires, Argentina.
1971
Afro-Brazilian Art, Africa Centre, Londres, Inglaterra.
1970
Art et Culture Afro-Brésiliens, sala especial, Palácio da Unesco, Paris, França.
1969
Exposição Internacional de Arte Afro-Brasileira, sala especial, Musée Dynamique, Dacar, Senegal.
1969
Exposição Internacional de Arte Afro-Brasileira, Ghana National Museum, Acra, Gana.
1968
Exposição Internacional de Arte Afro-Brasileira, Museum of Antiquities, Lagos, Nigéria.
1967
Afro-Brazilian Sacred-Art - Didi dos Santos, Nigeria Trenchard Hall, Ibadan, Nigéria


Prêmios


1996
1º Prêmio Copene de Artes Plásticas, com exposição individual na Galeria Prova do Artista, Salvador, Brasil.
1995
Medalha Tomé de Souza, da Câmara Municipal de Salvador, Brasil.
1988
Prêmio Ajaama, do Grupo Cultural Olodum, como Homem do Ano.
1967
Prêmio Estado da Bahia, Bienal Nacional do Brasil, Salvador, Brasil.


Livros


1946
Yorubá tal Qual se Fala, dicionário-vocabulário iorubá e português, pela editora e livraria Moderna, Salvador, Brasil.
1961
Contos Negros da Bahia, com prefácio de Jorge Amado e ilustrações de Carybé, editado pela GED, Rio de Janeiro, Brasil.
1962
Axé Opó Afonjá, com notas do professor Roger Bastide e prefácio de Pierre Verger, editado pelo Instituto Brasileiro e Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, Brasil.
1963
Contos de Nagô, com ilustrações de Carybé, editado pela GRD, Rio de Janeiro, Brasil.
1988
Mito da Criação do Mundo, com litogravuras de Adão Pinheiro, pela editora Massangana, Recife, Brasil.
1989
História de um Terreiro Nagô, pela editora Max Limonad, São Paulo, Brasil.
1987
Xangô, El Guerrero Conquistador y Otros Cuentos da Bahia, Editores S.D., Buenos Aires, Argentina; Contes Noires de Bahia (Brésil), Editions Karthala, Paris, França.
1981
Contos de Mestre Didi, editora Codecri, Brasil.
1971
Eshu Bara Laroyê - a Comparative Study, editado pelo Institute of African Studies da Universidade de Ibadan, Nigéria.
1967
West African Rituals and Sacred Arte in Brasil, em co-autoria com Juana Elbein dos Santos, editado pelo Institute of African Studies da Universidade de Ibadan, Nigéria.
1966
Por que Oxalá Usa Eküdidé, livro-objeto com ilustrações de Leino Braga, editado pela Edições Cavalheiros da Lua, Salvador, Brasil.