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Tomie Ohtake: A Po�tica da Linha no Mundo da Cor | ![]() | ||||||||
Por Fernando Cocchiaralle Como se articulam as esculturas in�ditas de Tomie Ohtake com o conjunto predominantemente pict�rico de sua obra? De que lugar brotam estas linhas de ferro, estes quase desenhos que se movimentam no espa�o? Onde situ�-las em um mundo organizado pela cor, no qual a for�a do tra�o parece ausente? As indaga��es procedem uma vez que as caracter�sticas espaciais da extensa produ��o da artista, inclusive as da gravura e escultura, v�m sendo interpretadas freq�entemente a partir da cor e da forma, como se a linha, fundamental nas composi��es figurativas e abstratas iniciais, tivesse sido definitivamente sepultada, em conseq��ncia de sua supera��o na pintura de Tomie, a partir de 1958. Se a integridade pict�rica, uma vez atingida, n�o mais comportaria o recurso ao grafismo, o elemento gr�fico, em princ�pio estranho �s quest�es estritamente pict�ricas, n�o tem sido, desde ent�o, considerado por estas leituras. Talvez porque, detendo-se exclusivamente na pintura, predominante na pr�tica art�stica de Ohtake, partam da suposi��o de que o sentido de uma obra deva ser encontrado na coer�ncia linear do processo criativo. Entretanto, a linha continua desempenhando um papel de destaque sempre que a artista interv�m diretamente no espa�o real, tanto nas obras de integra��o arquitet�nica e cenografia quanto nas esculturas mostradas nesta Bienal. A �nfase na coer�ncia do processo criativo seria, sobretudo, uma exig�ncia de ordem suscitada pelo discurso da cr�tica e n�o pelo fluxo de produ��o das obras. Citada por muitos como qualidade espec�fica da produ��o de Ohtake, esta �nfase termina por surtir um efeito inverso ao pretendido, pois, ao inv�s de caracterizar seu trabalho, mant�m-no naquela generalidade comum � toda cria��o, posto que o processo � sempre significativo e esclarecedor do desenvolvimento da obra de qualquer artista. Restaria saber se o sentido espec�fico das produ��es art�sticas pode ser instaurado pela id�ia de coer�ncia, de linearidade, ou se esta deve dar lugar a uma outra concep��o de ordem, de tipo constelar, na qual seria poss�vel supor que fragmentos do passado de uma obra podem cruz�-la, como cometas, reaparecendo mesmo depois de longo hiato. Seria tamb�m importante averiguar em que medida um processo de produ��o que se d� individualmente, como o da obra de arte, torna-se relevante n�o apenas para quem a realizou, mas para uma coletividade, uma cultura e a hist�ria da arte de um pa�s. Em 1961, M�rio Pedrosa, no texto Tomie Ohtake: Entre a Personalidade e o Pintor (1), observava: "...Nela o que interessa � a capta��o da id�ia, isto �, o motivo ou a raz�o da obra pict�rica. Ela �, com efeito, desses pintores que l�em o quadro a posteriori e o julgar�o em conseq��ncia dessa leitura, desse di�logo com ele. N�o basta pint�-lo, � preciso deixar que o quadro feito seja obra, a obra se torne obra, no sentido heideggeriano, ou volte ao que a fez, como o espelho quando nos devolve a pr�pria imagem. Esse processo de vir a conhecer a pr�pria obra se passa na contempla��o, pois nesta � que a obra se d� 'em seu ser criatura, como real - quer dizer - ela se faz presente com seu car�ter de obra' (Heidegger)". M�rio Pedrosa faz um diagn�stico preciso do processo individual de Tomie e do car�ter contemplativo da rela��o entre a artista e sua pintura, lembrando-nos tamb�m, indiretamente, ao mencionar que ela � "desses pintores que l�em o quadro a posteriori", o modo pelo qual a ent�o nascente pintura de Ohtake inscreveu-se, nos anos 50, em quest�es cruciais para os desdobramentos futuros da produ��o art�stica brasileira, vinculando seu trabalho, desde a origem, a um momento de renova��o cultural sem precedentes hist�ricos em nosso pa�s. A pol�mica entre as diversas tend�ncias do Abstracionismo passava pela explicita��o das diferentes maneiras que os artistas tinham de conceber e produzir suas obras. Neste contexto, informar ao p�blico sobre o modo pelo qual trabalhavam tornou-se essencial � estrat�gia do texto cr�tico. Isto �, para a cr�tica e os leitores n�o era indiferente se a obra fora projetada racionalmente, a priori, caso do Concretismo, ou se o artista a deixava gerar-se na produ��o, avaliando-a durante e ap�s a fatura, portanto, a posteriori, como no Informalismo, pois apontavam para algo al�m de simples diferen�as de temperamento manifestando, desde a g�nese da cria��o, quest�es est�ticas e �ticas muito mais abrangentes. Momento em que, muitos abstracionistas, voltavam-se para o Oriente em busca de uma tradi��o - a da caligrafia - que desse sentido perene � instantaneidade do gesto, � poss�vel que a origem japonesa de Tomie a tenha predisposto a uma escolha. A introspec��o contemplativa e seu intuitivo processo de trabalho levaram-na, ainda em 1954, quando tinha somente dois anos de produ��o sistem�tica, a abandonar a representa��o e iniciar-se na abstra��o informal, tornando-se uma de suas pioneiras. De qualquer modo, a pintura dessa artista brasileira jamais incorporou o gesto caligr�fico � ordem espacial de sua obra, a exemplo do que fizeram outros abstratos de proced�ncia japonesa. Da tradi��o caligr�fica restou, contudo, na obra de Tomie, a pot�ncia do tra�o, da linha, ainda que esvaziada da expressividade gestual. O Informalismo procurava instaurar processos de comunica��o fundados na intersubjetividade, ressaltando o car�ter individual da cria��o art�stica e de sua frui��o. "A subjetividade, ali�s, � uma esp�cie de fundamento da rela��o entre artista e p�blico, pois se deixa a este �ltimo toda liberdade de situar os planos do quadro a n�o importa qual lugar da terceira dimens�o do espa�o pictural, tornando-o um co-autor da obra. Por isso mesmo, a percep��o de planos em profundidade e o uso livre de tons n�o significam, para o Abstracionismo, uma regress�o aos princ�pios da racionalidade renascentista (tal como o acusavam os concretos e neoconcretos), pois a ruptura, no caso, se d� entre subjetividade e raz�o" (2). Essa atitude de implica��es n�o s� est�ticas, mas tamb�m �tico-pol�ticas, configurava no Brasil da d�cada de 50 uma silenciosa alternativa para a impessoal objetividade do mundo da ind�stria, no qual o pa�s rec�m-ingressara, e seu correspondente no campo da arte, o Concretismo, que preconizava a interobjetividade, ou seja, a comunica��o racionalmente definida entre Sujeitos e uma racionalidade distinta daquela proposta pela arte da Renascen�a. "Em compara��o com o Concretismo e, secundariamente, com o Neoconcretismo, que negava seu car�ter de grupo, apesar de ter lan�ado um manifesto e produzido v�rios documentos, os artistas informais no Brasil, como europeus e americanos, nunca atuaram em bloco, sendo avessos a tend�ncias grupais e a no��es de disciplina ditadas de fora da experi�ncia individual. Os contatos que mantinham entre eles e com artistas de outras tend�ncias, sempre individualizados, dificultavam a manifesta��o p�blica de suas diverg�ncias internas. Embora muitos artistas informais, como Fayga Ostrower, tivessem preocupa��es intelectuais ineg�veis, estas decorriam em primeiro lugar de quest�es colocadas por seu trabalho e n�o de exig�ncias te�ricas coletivas. O Informalismo n�o produziu discursos de grupo porque a quest�o da liberdade ocupa um lugar central em sua a��o. Sistematiz�-las em princ�pios seria, portanto, profundamente contradit�rio. Por isso, as raz�es te�ricas que acionam as cr�ticas concretistas tanto ao Neoconcretismo quanto ao Informalismo, n�o encontram, no caso deste �ltimo, um interlocutor organizado, atomizando-se sem endere�o certo na independ�ncia individual dos artistas abstratos. Numa certa medida, a aus�ncia de documenta��o textual � a causa da dificuldade de situarmos o Informalismo no debate da �poca, que op�e os movimentos da tend�ncia geom�trica � pluralidade abstrata. Todo esfor�o de sistematiza��o do Abstracionismo Informal esbarra nestes limites: se os informais pouco ou quase nada escreveram sobre suas id�ias, por outro lado a cr�tica de arte mais atuante no pa�s tendia a apoiar a vertente geom�trica, avaliando, por isso mesmo, as quest�es do Informalismo por par�metros construtivistas. (...) As cr�ticas ao Informalismo no Brasil intensificam-se na segunda metade da d�cada de 50, quando o Tachismo europeu ganha evid�ncia nas Bienais de S�o Paulo. Considerando-o um modismo internacional, artistas e cr�ticos favor�veis ao geometrismo tendem a reduzi-lo apenas �s manifesta��es tachistas. (...) A redu��o, contudo, prestava-se � estrat�gia da posi��o geom�trica na pol�mica, porque lhe permitia opor ao caos imputado ao Informalismo a vontade de ordem da tend�ncia construtiva" (3). Especialmente no momento em que sua hegemonia no pa�s via-se amea�ada pela voga tachista revelada pela IV Bienal Internacional de S�o Paulo. O que estava em quest�o, por�m, eram duas no��es radicalmente diversas de ordem. Aquela, evidente, baseada em um projeto espacial fundado na geometria (o Concretismo e o caso, particular�ssimo, do Neoconcretismo avesso � exacerba��o racionalista do primeiro) e a do Informalismo, fundada no processo de execu��o da obra. Nesta conjuntura, a observa��o de Pedrosa sobre o m�todo de trabalho de Tomie Ohtake adquire uma significa��o que excede, em muito, os limites estritamente individuais nos quais nossa compreens�o atual tenderia a confin�-la. Assim como a maioria dos artistas informais brasileiros, Tomie jamais deixou de considerar a import�ncia da ordem espacial de seu trabalho. A estrutura��o das obras desta artista, desde as primeiras paisagens at� as abstra��es de 1957, se d�, principalmente, por meio de um elemento muito pr�prio, a linha gr�fico-pict�rica. Neste ano, a prop�sito da exposi��o de suas telas abstratas no Museu de Arte Moderna de S�o Paulo, Geraldo Ferraz comenta que "...a pintura de Tomie Ohtake predisp�e imediatamente o observador a uma considera��o anal�tica mais atenta. E a surpresa � boa quando essas telas resistem, como composi��o, como estrutura��o de um espa�o, pela sua �ntima for�a de linhas concentradas, com um objetivo bem definido na ocupa��o e na organiza��o que lhes � inerente" (4). A import�ncia da linha tem origem nas paisagens da artista, em que desempenhava uma fun��o essencial na sugest�o de profundidade. Nelas, o espa�o, seja pela falta de uma forma��o acad�mica ou por uma op��o modernizante, n�o resultava do uso da perspectiva, t�o cara ao Ocidente, mas da superposi��o de planos. Estes tampouco eram tratados como na tradi��o oriental, que os distribu�a em camadas sucessivas, da base para o alto do suporte, talvez porque a pincelada espessa n�o permitisse o jogo de transpar�ncias e aguadas necess�rio � representa��o da dist�ncia, conforme aquela tradi��o, apesar da origem japonesa de Tomie. Da� decorria o recurso ao elemento gr�fico, fundamental para a ordem espacial destes trabalhos e indispens�vel para estruturar o primeiro plano que ocupa toda a superf�cie do quadro. Nas paisagens o primeiro plano era graficamente constru�do pela presen�a linear de �rvores retorcidas que cortam verticalmente a tela de alto a baixo. A linha � pois, nessas pinturas, antes de tudo, uma grade que organiza a composi��o, permitindo, simultaneamente, a vis�o dos planos crom�ticos situados atr�s dela. A partir de 1954 sua pintura torna-se abstrata, mas a superf�cie da tela continua sendo organizada pela forte presen�a de grafismos negros, herdados das paisagens, que se imp�em ao olhar desde o primeiro plano do trabalho. Toda a produ��o pict�rica de Tomie Ohtake, pelo menos nas obras produzidas at� 1957, tem o espa�o estruturado pela linha. A malha gr�fica do primeiro plano da tela, por ser a �ltima parte pintada do quadro, � a primeira a ser vista quando o observamos, fazendo com que o olhar do espectador siga um caminho inverso ao da fatura. Dessa data em diante, por�m, a linha negra que estruturava o espa�o d� lugar a composi��es mais complexas em que esta perde progressivamente a fun��o que possu�a. Doravante, a estrutura e a forma derivar�o, principalmente de rela��es crom�ticas. Ausente da pintura, a linha reaparece estruturando o espa�o, sobretudo quando a artista trabalha na tridimensionalidade. O cen�rio da �pera Madame Butterfly, apresentada em 1983 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, � crucial para a compreens�o do car�ter gr�fico das esculturas recentes de Ohtake, pois estabelece a conex�o constelar entre as paisagens e as abstra��es da d�cada de 50 e o espa�o agora criado pelas linhas de ferro retorcido, expostas nesta Bienal. Delimitado pelo palco italiano, o espa�o c�nico tradicional � simultaneamente quadro (aproximando-se, nesse sentido, do plano em perspectiva caracter�stico da janela renascentista) a ser visto de fora para dentro pelo p�blico e espa�o tridimensional, onde se movimentam os atores do espet�culo. O desafio dessa experi�ncia cenogr�fica colocou a artista diante de quest�es similares �s da pintora iniciante, nas paisagens de 1952, e face aos problemas suscitados, posteriormente, pelas esculturas, � artista madura e experiente. Tal como no passado, mas respaldada no conhecimento adquirido por for�a de anos de trabalho, ela n�o poderia ceder �s limita��es tradicionais desse tipo de espa�o c�nico. Retoma, pois, em novas bases, a superposi��o de planos e o valor estrutural da linha de outrora, incorporando � malha gr�fica a for�a crom�tica de sua longa trajet�ria de pintora. O elemento gr�fico na po�tica de Tomie n�o deve, portanto, ser visto em sentido estrito, tal como o que habitualmente op�e o desenho (linha) � pintura (cor). � antes uma maneira de estruturar a profundidade do espa�o por barras e faixas, negras ou profusamente coloridas, mas tamb�m em linhas, de modo a permitir ao olhar trespass�-lo, a deixar-nos ver o que est� atr�s do primeiro plano. No espa�o em perspectiva da tradi��o renascentista, a representa��o da profundidade remete o olhar � linha do horizonte, � dist�ncia m�xima que possa alcan�ar, atrav�s dos pontos de fuga, deixando livre, dentro do poss�vel, o primeiro plano. Racionalmente projetado pelo artista, este tipo de espa�o pretende que o p�blico se situe no ponto de vista de um observador objetivo. De fora da 'janela', o fruidor � convocado a olhar para o mundo, representado no quadro, com a clareza e a objetividade proporcionadas pelas obras da intelig�ncia. A presen�a m�nima de intermedi�rios, entre o espectador e o horizonte da paisagem, n�o deixa d�vidas a respeito de uma alteridade sequer semelhante �quela fundadora do conhecimento: um Sujeito e um Objeto, institu�dos pela raz�o. Quando a perspectiva � abandonada, a situa��o se inverte e o primeiro plano da tela passa a ser fundamental para a representa��o da dist�ncia, relegando a linha do horizonte a uma situa��o secund�ria e at� dispens�vel. Neste caso, o uso da linha, como uma malha que constr�i o espa�o desde a superf�cie, torna-se um recurso indispens�vel para a sugest�o de profundidade. O espectador assume aqui o papel de observador oculto. V� n�o mais um mundo preparado para a a��o, livre espa�o constru�do pela perspectiva, mas o percebe pela trama do primeiro plano do quadro, que marca a diferen�a de dois espa�os: aquele antes da malha (espa�o real), onde se oculta o observador (artista e p�blico) e o do mundo sugerido na tela a partir do plano inicial. A alteridade do artista, do fruidor e da obra, no caso, se d� subjetivamente, de modo interiorizado, contemplativo. Paradoxalmente, encontramos na obra de Rafael, um dos mestres do Renascimento e da perspectiva, um exemplo de representa��o fundado na valoriza��o do primeiro plano e n�o na linha do horizonte. Trata-se do afresco Liberta��o de S. Pedro da Pris�o, pintado entre 1512 e 1513, no qual a grade negra da cela mobiliza integralmente a superf�cie da �rea central da pintura. O espa�o c�nico e o pict�rico possuem alguns limites semelhantes. Enquadrados pelo ret�ngulo da boca de cena e o suporte, determinam sempre a exterioridade do espectador em rela��o � obra. Mesmo se olhados de um ponto de vista n�o frontal, estes espa�os s�o penetr�veis somente pela vis�o, nunca integralmente. Nesse sentido, quando estruturados n�o em profundidade, mas pelo primeiro plano, como no caso da malha gr�fica predominante em momentos recorrentes da obra de Tomie, revelam ao fruidor mais atento sua natureza impenetr�vel. O espa�o criado pelas esculturas atuais � totalmente diverso. Soltas na sala de exposi��o, dispostas em diferentes alturas, as pe�as funcionam a partir da cambiante rela��o entre o olhar do fruidor, o movimento de seu corpo, dos outros corpos e das esculturas. Como fragmentos rompidos da malha gr�fica, que organizava o plano pict�rico e a cena italiana, as linhas brancas de ferro pintado permitem a penetra��o e a circula��o do p�blico. A espacialidade produzida por linhas pendentes do teto ou fragilmente equilibradas no solo e na parede, grafismos m�veis, n�o � absoluta; integra-se ao movimento do p�blico incorporando-o �tica e esteticamente � obra. Entre elas, a contempla��o permitida pela alteridade existente entre o fruidor e o espa�o pict�rico tradicional desfaz-se na relatividade dos pap�is. Interceptado pelas esculturas o corpo do fruidor torna-se simultaneamente obra (os outros) e ponto de vista (o olhar circulante de cada um). A aus�ncia de cor nas esculturas desloca o controle crom�tico, fundamental nas telas de Tomie, para a mutante combina��o em processo das cores portadas pelo p�blico que circula na exposi��o. A sala transforma-se, ent�o, em uma pintura estruturada pela constante presen�a das linhas de ferro que aguardam o cromatismo aleat�rio do corpo fruidor que o espa�o assimila. |
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