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Ritos de passagem
1996. Projeto para Universalis. Caixas de sapato, sapatos usados, pedras de lios, areia, vidro, 1000X1000 cm

 


Homenagem a Chico Mendes (detalhe)
1989. Penas, cuias e madeira, 500X700X700 cm. Instalação em co-autoria com Regina Vater


A Paixão segundo Evangelista (detalhe)
1994. Instalação. Pedra jacarandá, barbante, diâmetro 300 cm. Foto: Carlos Dias

 



Roberto Evangelista

Por Paulo Herkenhoff


Travessias e Dissoluções

Essa é uma arte de exaustão e vazios. A instalação Ritos de Passagem de Roberto Evangelista reúne mil caixas de sapatos, dois mil sapatos gastos e cinco pedras de lioz retiradas de uma calçada da cidade de Manaus. As pedras, extraídas do tecido urbano, são uma crônica do colonialismo. Porque levavam mais do que traziam, os navios de arribação colonial chegariam vazios se não trouxessem pedras em seus porões. Flutuariam sem lastro. Traziam pedras cortadas de Portugal, usadas para pavimentar as ruas das cidades amazônicas que se modernizavam no boom da borracha. Essas pedras tornavam-se uma 'correção' da natureza amazônica, região desprovida de pedras duras. Cinco daquelas pedras foram desencravadas de sua imobilidade, na qual condensam sua história de corpo que se molda e esculpe com passos em um século de fricção entre calçado e calçada no movimento da rua. O paradoxo perverso é que, feitos de borracha sintética, esses sapatos, que hoje consomem as pedras, também funcionam como ícones da queda da fastigiosa economia extrativista da borracha. O processo seria então uma alegoria da idéia pós-moderna de desaparição do eu.

A pedra de cantaria introduz a noção de ausência (a idéia de uma falta na natureza) e de distanciamento - a pavimentação da cidade moderna calçada é modo de diferenciação entre espaço natural e espaço urbano, espelho de diferenças entre cultura nativa e cultura ocidental demarcadas no processo de colonização. As pedras cortadas - natureza racionalizada - ocultam o fato de que a cultura também se molda na relação com o meio natural. Essas pedras-lastro apontam para as leis da física como emblemas da necessidade de equilíbro na economia de trocas, onde caixas de sapato são peso morto ou peso nenhum. Deslocados, aqueles grupos de objetos (pedras, sapatos e caixas) produzem um estranhamento.

Era sapato e agora é lixo. Sapatos gastam pedras. As caixas exibem seu vazio como se estivessem localizadas num lugar entre esses dois pontos de dispersão de energia por fricção. São signos exaustos no consumo. Já não mais seriam meio apto para a produção. Encontraram no uso o limite de esgotamento de sua função como valor de troca. Ao comentar Mater Dolorosa (1976, um cubo de acrílico transparente com restos carbonizados de árvores sobre um quadrilátero de areia branca), de Roberto Evangelista1, o escritor Márcio Souza fala de "ruínas das culturas originárias, assaltadas e massacradas; ruínas das impossibilidades da civilização ocidental; ruínas da natureza mal compreendida, uma paisagem de destroços"2. Nesse 'pântano da aculturação' ocorre o duplo testemunho da constituição do sujeito-criador, o artista da tradição humanista-moderno, e da iminência de sua dissolução antes que (ou sem que) a modernidade ocidental tenha imposto plenamente sua hegemonia na região. Aqueles objetos inócuos, extraídos de sua utilidade cotidiana, são repotencializados como signos. Vê-se Ritos de Passagem como uma paisagem de ruínas do consumo. A obra desoculta a última possibilidade de valor produtivo para esses signos no processo de circulação simbólica: articular uma voz coesiva num território de esquecimento.

A calçada, como parte da rua, diz o artista, é o lugar coletivo de um rito de travessia diário e constante. A vida flui como um rio, potente metáfora do tempo3. A instalação poderia ser um anti-rio. Cada pedra seria a imobilidade registrando as vidas que por ela transitam. Esse é o punctum no fluxo do tempo. O princípio do tempo, instituído pelo sujeito, será vivencial, dissolvendo a noção de manufatura e autoria. Na instalação Mater Dolorosa in Memoriam II (da Criação e Sobrevivência das Formas), de 1982, centenas de cuias flutuam num igarapé. São organizadas dentro de certas formas. A obra é decurso e consumação do tempo. Trabalhando sob a orientação de um pajé, Evangelista investiga o pensamento cosmogônico e a resistência da forma natural, primeira e simbólica. O artista busca uma medida essencial, "sem influência, sem estrangeiros e colonizadores", afirma.

A obra de Roberto Evangelista politiza o olhar da Amazônia no horizonte da sobrevivência. Diante de uma natureza singular e de sua riqueza cultural, na problematização da Amazônia prevalecem abordagens fenomênicas (o grau zero da natureza na obra de Waltércio Caldas) e político-antropológicas (a noção de voz do gueto para Cildo Meireles e país submerso de Emmanuel Nassar). Evangelista opera sobre a totalidade e o contínuo de devastações das queimadas, massacres de índios e de populações caboclas, falência da cultura ocidental. No entanto, essa 'paisagem de destroços' não é a cena da melancolia, já que a posição de Evangelista é estabelecer uma fissura na história como processo de abandono e agenciamento de recalques que (auto)vitima a Amazônia. Sua perspectiva fenomênica, sem idealizações, é impregnada desse inescapável pathos. Nós vivemos com drama e aprendemos com a tragédia, diz o artista.


1 Essa obra precede em dois anos o Manifesto do Rio Negro (1978) de Pierre Restany e Frans Krajcberg e está adiante do processo internacional de discussão da devastação da Amazônia, que só se amplia depois da falência de grandes projetos agroindustriais de companhias multinacionais.
2 "Um país esquecido dentro do país", in Visão, 29 de maio de 1978.
3 Como nos rios de cuias das instalações Mater Dolorosa in Memoriam II (Sobre a Criação e Sobrevivência das Formas) e Resgate (1992).



Cronologia


Nasceu em Manaus, Amazonas, Brasil. Vive e trabalha em Manaus, Brasil.


Exposição individuais e coletivas

1994
A Paixão Segundo Evangelista, Centro de Artes Chaminé, Manaus, Brasil; Gaia-Gaiola, instalação com ready-made para crianças, da série Utopia, Centro de Artes Chaminé, Manaus, Brasil.
1992
O Resgate, América, Bride of the Sun, Royal Museum of Fine Arts, Antuérpia, Bélgica; O Resgate, instalação e happening no Rio Negro, Eco 92, Manaus, Brasil.
1990
Transcontinental - Nine Latin American Artists, Ikon Gallery, Birmingham, Inglaterra.
1990/91/92
Aos Elementos, instalação com Regina Vater, para projeto itinerante Revered Earth, The Contemporary Arts Museum, Houston, Estados Unidos.
1989
Homenagem a Chico Mendes, instalação com Regina Vater, Nova York, Estados Unidos; Travels: Here and There, Clocktower Gallery, Nova York, Estados Unidos.
1986
Pré-escultura Gotham City com artistas amazonenses, Projeto Madeira, Brasil.
1985
A Natureza em Preto e Branco, Coletiva de artistas amazonenses, Galeria Afrânio de Castro, Manaus, Brasil.
1983
Arte Moderna no Salão Nacional 1940-1982, VI Salão Nacional de Artes Plásticas, sala especial, Rio de Janeiro, Brasil; performance com o grupo de dança NUDAC, hall do Teatro Amazonas; Afrescos Pré-Mondrianescos, I Festival do Vídeo de San Sebastian, vídeo 12´, Espanha.
1982
Play time: Infinitude, V Salão Nacional de Artes Plásticas, vídeo 3´, Rio de Janeiro, Brasil.
1981
IV Salão de Artes Plásticas, vídeo experimental, Rio de Janeiro, Brasil.
1980
Vídeos experimentais, Manaus, Amazonas.
1977
Niká Uilcana, XIV Bienal Internacional de São Paulo, Brasil.
1976
Mater Dolorosa, in Memoriam I, 10 Anos Zona Franca de Manaus, Amazonas, Brasil; Mano, Maná - Das Utopias, Bienal Nacional, São Paulo, Brasil.


Prêmios

1982
Prêmio Viagem ao País, Mater Dolorosa, in Memorian II (da criação e sobrevivência das Formas), V Salão de Artes Plásticas, Rio de Janeiro, Brasil.
1981
Melhor montagem, I Festival de Filmes para TV, Mater Dolorosa, in Memorian II (da criação e sobrevivência das Formas), Rio de Janeiro, Brasil.
1980
Prêmio do Governo do Estado do Amazonas, Manaus, Brasil.
1976
Prêmio do Ministério das Relações Exteriores, Bienal Nacional, São Paulo, Brasil.