| Por Agnaldo Farias
Não será o caso de, a esta altura, indagarmos não tanto sobre o resultado do nosso embate com o mundo, sobre os produtos que obtemos mediante nossa discutível habilidade em submeter toda a matéria existente aos nossos desígnios, mas, ao menos uma vez, indagarmos sobre as sobras, as aparas, enfim, aquilo que resta ao fim de tudo? A recorrência desta indagação é um dado essencial na poética de Arthur Barrio. Mesmo que mesclada a outros elementos básicos, mesmo quando eventualmente situada num plano secundário, ela pontua toda a sua trajetória; é ela que persistentemente se coloca em toda a sua extensão, conferindo-lhe um rumo que, ao final, separa Barrio de outros artistas de sua geração, colocando-o sob o signo da singularidade.
Desde o início dos anos 60, Barrio vem se interessando pelas sobras, pelos resíduos que deixamos. Note-se que esse interesse nada tem a ver com um discurso de fundo ecológico, com a velha denúncia da implacabilidade da razão instrumental, da destruição da natureza, do buraco de ozônio, da morte das baleias e de outros tantos terrores contemporâneos. É certo que as trouxas ensangüentadas espalhadas no Rio de Janeiro e Belo Horizonte em 1970 justificavam-se parcialmente como comentários sobre a hedionda vida subterrânea gerada pela ditadura militar. Mas não se esgotavam aí. Também superavam a esfera da denúncia os quinhentos sacos plásticos contendo sangue, pedaços de unha, saliva (escarro), merda, meleca, ossos etc., igualmente dispersos no Rio de Janeiro. Como as trouxas, os sacos eram abandonados pelo seu autor à curiosidade e à manipulação dos transeuntes anônimos, que eventualmente passavam a co-autores do trabalho. Detritos cuja deriva era registrada - não interceptada - pelo artista, que, ele também um transeunte, atentava às reações psicoorgânicas destes.
Como já é patente na descrição desses trabalhos, ou situações, como definia o próprio artista, tornava-se muito difícil caracterizá-los como obra-de-arte, mesmo que se tenha em mente o grau de experimentação daqueles anos. Um exame mais detalhado demonstra seu afastamento tanto do objeto, tal como eram tratados pela arte pop, quanto da eleição de novos materiais, caso da arte Povera e mais ainda da orientação formalista dos minimalistas.
Para além do propósito de criar uma obra que exaltasse ao espectador sua lógica interna, como era o caso da obra-de-arte moderna; para além da crítica às formas canônicas de produção e apresentação da obra-de-arte e da interação fenomenológica entre ela e o espectador, nervo do neoconcretismo do qual ele participou de perto e que representou uma significativa alteração dos termos da discussão anterior, Barrio encaminhou-se não apenas, como já disse, rumo ao que resta da experiência, mas também àquilo que efetivamente não se experimenta, àquilo que corre longe da nossa consciência.
A idéia de dispersão, de desagregação do trabalho no tecido urbano, corresponde por si à perda do foco; elegê-la como estratégia vale como tentativa, de resto infrutífera, de atingir a totalidade da vida. A dimensão do sujeito produtor da obra premeditadamente naufraga na flutuação que o corpo da obra, estilhaçado, conhece pelo território da cidade. Por sua vez, o trauseunte, com o seu agudo desinteresse por tudo aquilo que não compõe o elenco de suas ações ordinárias, nem sempre põe na sua mira aquele concentrado energético - o saco plástico, repleto de objetos deflagradores.
Desamarrado dos sentidos que emprestamos às coisas, cada saco, embora pleno de matéria e energia heteróclita, metamorfoseia-se em simples receptáculo de dejetos. Lixo entre lixos. Este é o destino das coisas que colocamos à margem da experiência. São elas as aparas, a matéria que a nossa presunção consagra como corrompida, degradada, que condenamos a não-ser, como se fôssemos capaz de isso decidir.
É justamente nesta fresta que Barrio trabalha. É como se ele se perguntasse sobre o que contam as coisas umas às outras, quando se encontram. Promove eventos que tanto podem ocorrer numa sala quieta quanto na intensidade feérica da esquina de uma metrópole. Que diálogo então estabelecem entre si as pequenas foice e faca cravadas no chão a curta distância uma da outra e ligadas por uma corda delgada que, partindo do cabo de uma, prende-se à lâmina da outra? Como reage a parede ao peixe seco que o artista, escavando-a, enxerta nela? E como reage essa mesma parede às marcas, os desenhos nela executados? E quem, do lado de fora, na rua, a pé ou de carro, distinguirá entre todos os sons daquela hora o som que o artista extrai assoprando um búzio dentro de um quarto fechado? Esses são apenas exemplos da constatação de que agora, como antes e como no futuro, tudo, exatamente tudo está acontecendo.
Diante desse universo descentrado e imenso, espantosamente imenso, como elaborar um projeto capaz de armar uma ação, uma vez que a ação propriamente dita jamais coincidirá com o que se pensava dela? Da mesma forma não há possibilidade de registro de coisas que, por sua natureza mesma, instauram seu próprio tempo e espaço. Daí por que Barrio também está sempre produzindo cadernos de anotações nos quais, à maneira de tudo o que acontece na vida, as idéias, os eventos cotidianos, os impulsos, os lances de uma partida de xadrez vão se desenrolando, às vezes juntos, outras separados, numa cadência espaço-temporal.
Embora seja impossível atingir a totalidade, nada nos impede de desejá-la e buscá-la. Antes isso que cedermos ao impulso da exclusão. Fiel a este princípio é que, para essa Bienal, Barrio trouxe-nos sua Uma Extensão no Tempo. Duas salas despojadas, imersas na penumbra, porque "muita luz chapa a visão e faz perder as nuanças externas e internas", e sal grosso, branco, espalhados por ela. Na primeira - o depósito caótico -, espalhadas no chão, na parede, em níveis de altura variados, antigas obras do artista. Memória, acúmulo, desordem, história pessoal. Na outra sala, maior, poucas lâmpadas fracas extraem reflexos dos cristais de sal. Um saco de sal encostado na parede coloca-se à disposição do espectador para que ele possa, enquanto vai pisando e produzindo o som dos cristais esmagados, como um demiurgo, jogá-lo pelo chão e semeá-lo. Na parede oposta à entrada, uma guia e um aro de metais pendurados, para que ele, como uma criança, passeie sobre uma paisagem vagamente estrelada, fazendo girar silenciosamente sua pouca alegria.
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| Arthur Alipio Barrio de Sousa Lopes nasceu em 1º de fevereiro de 1945 na cidade do Porto, Portugal. Em 1955 viajou para o Brasil e fixou-se na cidade do Rio de Janeiro, onde vive e trabalha.
Exposições individuais
1995 Uma Extensão no Tempo, Paço Imperial, Rio de Janeiro, Brasil. 1993 Extensão, Galeria IBEU, Rio de Janeiro, Brasil; Galeria Saramenha, Rio de Janeiro, Brasil; Galeria Goudard, Rio de Janeiro, Brasil; Galeria Brot und Käse, Genebra, Suíça. 1989 Kate Art Gallery, São Paulo, Brasil; Experiência nº 4, Galeria de Arte do Centro Empresarial, Rio de Janeiro, Brasil. 1988 Montesanti Galeria, Rio de Janeiro, Brasil; Montesanti Galeria, São Paulo, Brasil. 1987 Experiência nº 1, Galeria de Arte do Centro Empresarial, Rio de Janeiro, Brasil; Petite Galerie, Rio de Janeiro, Brasil. 1986 Galeria Millan, São Paulo, Brasil. 1984 Galeria Arco, São Paulo, Brasil; Registros, Fundação Makkom, Amsterdã, Holanda; Fundação Het Apollo Huis, Eindhoven, Holanda. 1983 Série Africana, Galeria São Paulo, Brasil; Minha Cabeça Está Vazia/Meus Olhos Estão Cheios (fazer de cabeça para baixo), exposição itinerante em quatro locais: Galeria Suspekt, Amsterdã, Holanda; Espaço Cairn, Paris, França; Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil; Bienal Internacional de São Paulo, Brasil. 1982 Le Dernier Portolano, Espaço Cairn, Paris, França; Série Africana, Galeria São Paulo, Brasil. 1981 Extensão, Espaço Cairn, Paris, França. 1979 Projetos Realizados e Quase Realizados, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil. 1978 Plenitude, Espaço Cairn, Paris, França; Rodapés de Carne, Garage 103, Nice, França. 1977 Livro de Carne, Vitrine pour l'Art Actuel, Paris, França; Registros, Galeria Alvarez, Porto, Portugal. 1974 Central de Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, Brasil; Desenhos, Galeria Millan, São Paulo, Brasil. 1972 Blooshlulss... trabalho/exposição realizada em um terreno baldio, Rio de Janeiro, Brasil.
Exposições coletivas
1995 Livros de Artistas, Museu de Arte Moderna, São Paulo, Brasil. 1994 Livros de Artistas, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, Brasil; Desenho Brasileiro, Karmelita Kunst Haus, Colônia, Alemanha. 1994 As Potências do Orgânico, Museu da Chácara do Céu, Rio de Janeiro, Brasil; Coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil; Arte Efêmera, Centro Cultural Itaú, São Paulo, Brasil; Bienal Brasil Século XX, Fundação Bienal de São Paulo, Brasil. 1993 Livros de Artistas, Espaço paralelo à Bienal de Veneza, Itália. 1992 Filmes, vídeos sobre artistas, Centro Georges Pompidou, Paris, França. 1987 O Expressionismo na Arte Brasileira, 19ª Bienal Internacional de São Paulo, Brasil. 1983 3.000m3, Espaço Sérgio Porto, Rio de Janeiro, Brasil; Artista convidado, 17ª Bienal Internacional de São Paulo, Brasil. 1981 Livres d'Artistes, Centro Georges Pompidou, Paris, França; Mail-Art, 16ª Bienal Internacional de São Paulo, Brasil; Expressions, Fundação Makkom, Amsterdã, Holanda. 1980 Quasi Cinema, Milão, Itália. 1977 Arte Postal, Kresge Art Gallery, Michigan State University, Estados Unidos; ICC Antuérpia, Bélgica; Espaço Cardin, Paris, França; Edições e Comunicações Marginais da América Latina, Maison de la Culture du Havre, França; Small Press Festival in Prokaz Wart Zall, texto-som-imagem, Academiestraat, Gent, Bélgica; O Objeto na Arte/Anos 60, Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo, Brasil; Museu de Belas Artes, Madri, Espanha. 1976 Arte Latino-Americana , CAYC ICA, Londres, Inglaterra. 1975 Desenho Brasileiro, exposição itinerante em dois locais: Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal; Museu Albertina de Viena, Áustria; 2os Encontros Internacionais de Arte, exposição itinerante em dois locais: Viana do Castelo, Portugal; Palácio dos Coruchéus, Lisboa, Portugal. 1974 Prospectiva 74, Museu de Arte Contemporânea, São Paulo, Brasil; Desenhos, Galeria Millan, São Paulo, Brasil; Natureza, Significado e Função da Obra de Arte, Galeria IBEU, Rio de Janeiro, Brasil; Museu Galliéra, Paris, França. 1973 Arte Brasileira, CAYC Buenos Aires, Argentina. 1972 Expo-Projeção, São Paulo, Brasil. 1971 Creation, Universidad de Mayagüez, Porto Rico. 1970 Salão de Verão, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil; Do Corpo à Terra, Belo Horizonte, Brasil; Information, Museum of Modern Art, Nova York, Estados Unidos. 1969 Salão da Bússola, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil.
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